Por que Sacerdotes?
O som da cachoeira era alto, muito alto; ela não parecia tão alta, mas após mais de uma hora sentado debaixo dela, parecia que o som dela preenchia totalmente os seus pensamentos, deixando pouco espaço para outras coisas. Não que não houvesse outras coisas: o peso da água caindo sobre suas costas era uma delas, e o seu corpo estava todo dormente, a não ser pelas lancinantes pontadas de dor e os fios gélidos de água que desciam por sua espinha; a grossa pele de touro o protegia da maior parte da água, mas alguns fios insistiam em passar por ela, e seus pés e pernas, que se encontravam cruzados enquanto ele se sentava sobre a rocha molhada, ainda sentiam as águas correndo por baixo. Boa parte de seu corpo estava dormente, mas suas mãos continuavam quentes, segurando a tigela onde as folhas de zimbro queimavam no carvão, gerando uma fumaça aromática que tomava o escuro ambiente por debaixo da pele de touro; e Yannet cantava, cantava os hinos aos seus Deuses antigos, e os repetia, pedindo por inspiração a Brigantia e Ogmios. Já estava assim por horas, e sua voz tremia, mas as palavras e seu significado eram conhecidos, e ele não conseguiria parar nem que quisesse; não enquanto a inspiração não viesse, não enquanto a fagulha do Imbas não incendiasse sua mente, não enquanto ele não encontrasse as respostas que buscava.
Estava assim desde que perguntara a seu mestre o motivo de existirem sacerdotes e a religião; ele o mandou para a cachoeira, para o ritual da pele do touro, dizendo que pensasse sobre os motivos pelos quais as pessoas buscavam os Deuses. Quando ele chegou, só conseguia pensar nas respostas que via dentro das vilas e cidades cristãs, onde uma religião organizada dominava, mas não conseguia associar essas mesmas respostas aos seus Deuses. Ele se perguntava o porquê das pessoas procurarem aos Deuses, mas lembrava sempre das igrejas cristãs, cheias de pessoas buscando o perdão para seus pecados; mas a sua religião não possuía pecado, mesmo que possuísse ensinamentos éticos. Cristãos e pagãos seriam tão diferentes assim? E pelas primeiras horas ele recitou os cânticos a Ogmios e a Brigantia, enquanto sentia o cheiro das bagas de zimbro, enquanto a água pesava sobre suas costas e trazia frio a seus pés e pernas, e essa foi a única resposta que ele conseguiu.
Por que eles queriam a absolvição dos pecados? Em algum momento, quando seu corpo já estava dormente de cansaço e que ele não sentia mais os pés, e que não tinha mais a noção de nada debaixo da pele de touro, nada além de frio e do aroma já fraco do zimbro, ele recebeu sua resposta; ela veio de uma forma que parecia que a pergunta não fora feita por ele, mas para ele, e ele é quem deveria responder. Eles buscavam entrar no reino dos Céus, no Paraíso de seu deus. Mas isso não respondia tudo; ainda buscamos os Deuses, mas não acreditamos no Paraíso; não como os Cristãos. Mas a pergunta ressoava na mente, como se alguém perguntasse e ele precisasse dar a resposta: “por que?” Porque havia o Outro Mundo, paraíso ou não, mas não Inferno, com a recompensa aos que as mereciam; porque ali os dignos partiriam para sua última jornada, para banquetear com os Deuses e Ancestrais, no encontro das almas; a crença nos ensina que há um lugar para as almas. “Só isso?” A pergunta veio de forma abrupta, e ele não sabia quem perguntava; só sabia que tinha uma resposta para ela. Os cristãos possuem seus códigos morais para entrar nos céus, muitos códigos; mandamentos, pecados, a Igreja; nós não temos códigos como esses, mas temos ensinamentos que nos ensinam o que torna um homem digno aos olhos dos Deuses: a grandeza e generosidade de Louernius, a justiça de Cormac mac Art, a coragem de Caractacus, Calgacus e Bouddica, a honra de Brennos, a sabedoria de unir a Tribo de Vercingetorix, a consciência de poupar a Terra de Ambicatus; como esses homens, reis e heróis que tiveram seus nomes imortalizados nas lendas, representaram os ideais dos Deuses dos salões sagrados, nós também temos de ensinar esses valores ao povo, e adquirir nosso lugar nas tribos do Outro Mundo. “Só isso?” A pergunta veio de novo, mas dessa vez ele já estava esperando por ela, ainda que não soubesse ainda quem a fazia; não era uma voz masculina ou feminina, ainda que ela falasse diretamente à sua alma. Não, não é só isso; a religião nos ensina esses valores, não só para nos guiar à recompensa transcendental, mas para nos guiar no próprio mundo, nos ensinando valores dignos de ser seguidos na terra. “O mundo mudou desde a era dos Druidas”; dessa vez não era uma pergunta mas uma afirmação. E ele sabia ser verdadeira; agora, a velha fé minguava no mundo, e iria minguar mais e mais, e a afirmação dizia que ela já não era necessária. Mas ele respondeu com a voz do seu coração, e disse a si mesmo que sabia que o mundo mudara, como havia mudado tantas vezes antes e mudaria tantas vezes depois; e sabia que, mesmo que algo fosse perdido, ainda assim a velha crença ainda ensinaria valores dignos a esse mundo ou a qualquer outro; honra à Tribo quando esta é perdida, respeito à Terra quando este é esquecido. A crença dos Druidas ainda tinha o que ensinar ao mundo, e sempre teria. “Por que?” Uma vez mais a pergunta vinha, e uma vez mais Yannet sabia a resposta por instinto. Porque o Outro Mundo nada mais é que o reflexo deste; se não fizermos nada por esse mundo, do que seremos dignos no Outro? Se não ensinamos e praticamos a honra, a generosidade, a coragem, os valores da Tribo, por que devemos esperar isso quando passarmos o véu entre os mundos? Se não cumprirmos o pacto entre a Tribo e a Terra, entre o mundo humano e o dos espíritos da natureza, de respeito às entidades das árvores, bosques, rios, mares, e montanhas, o que devemos esperar delas quando as encontrarmos? “A morte é o início da longa vida”, e a continuidade de nosso papel nela depende de como estará o mundo nos acordes seguintes da harpa do Pai de Todos. Por isso, o nosso papel em vida deve ser o nosso papel quando as nossas barcas atravessarem as nove ondas, o papel do sábio que conhece o seu lugar no mundo, que traz harmonia à Tribo, que respeita a trégua com a Terra.
Yannet despertou. Mesmo após tantos anos, ele ainda se lembrava bem daquilo, quando seu mestre o obrigou a essa antiga prática para buscar suas respostas. No final, ele saiu com suas respostas, mas com o corpo completamente debilitado pelo frio e pela posição, e a mente esgotada. Ele se sentou por um momento, enquanto esfregava os olhos. Será que seria correto colocar Gwaltwent na mesma situação? Então ele olhou para o lado e viu seu cajado, e soube a resposta. Não, o cajado era mais divertido.
Nota:
O trecho onde é citado que “a morte é o início da longa vida” é uma adaptação do trecho de Lucano, onde é explicada a concepção gaulesa da vida após a morte.
Publicado originalmente em barddkunvelin.wordpress.com