Mitos
O homem se sentou entre as raízes de uma velha árvore; a cobertura de galhos e folhas lhe dava proteção contra o sol forte da região, e não era a primeira vez que aquela amiga lhe proporcionava aquele conforto. Ele tirou de seu bolso um pequeno canivete, e começou a descascar a maçã que trazia em sua mão; não que se importasse com a casca dela, mas havia se tornado um hábito permitir que um pouco daquilo que consumia fosse ofertado à natureza local. A casca da maçã nutriria a Terra, de uma forma ou de outra, e isso fazia bem ao seu espírito. Ele respirou fundo, se recostou na árvore e começou a saborear a maçã. Realmente gostava daquele lugar, entre o céu e terra.
Mas seu momento de paz não durou mais do que alguns momentos; logo ouvia vozes infantis conversando na sua direção. Ele estava acostumado, as crianças sempre estavam junto com a família quando eles viajavam para as celebrações. As vozes eram nitidamente de um menino e de uma menina, seus dois sobrinhos; e estavam exaltadas, discutindo alto. Logo estavam ao alcance de sua vista, e continuavam em sua direção discutindo.
-Eu to falando isso porque minha professora disse, e ela é quem me ensina! Por isso que nossos pais nos mandam para a escola!- dizia o garoto, com voz exaltada, mas educada como sempre.
-Então sua professora não sabe de nada, que nem você!! Porque tudo isso foi a minha mãe que me ensinou, e nosso vô ensinou pra você também! – retrucava a menina, que era mais nova, menor, mas sempre dotada de mais espírito e teimosia que o primo mais velho, que era mais curioso e pensativo.
O tio então mordeu a maçã; permitiu um barulho alto, proposital, para mostrar aos sobrinhos que estava ouvindo, e ficou olhando para eles com um olhar grave, como se se incomodasse pela interrupção de seu momento de sossego. Os dois olharam para ele, e meio que ficaram em silêncio. A menina foi a primeira a despontar a falar:
-Tio, ele disse que as historias dos Deuses não existem de verdade! Disse que eram fantasias pra crianças! Fala pra ele que isso é mentira!!
-Eu só disse aquilo que minha professora na escola disse! E ela é muito inteligente, tio!!
-Ela disse que nossos pais são mentirosos, seu bobão!! Fala pra ele tio!! Fala que as histórias dos Deuses não são fantasias!!
O homem engoliu um pedaço de maçã, limpou a garganta e olhou para os dois. De pronto eles entenderam que era a hora de uma pessoa mais velha falar; nisso a educação que seus irmãos haviam dado a essas crianças não tinha falhado. Mas ainda assim, a frase foi curta, e uma pergunta:
-E se forem?
As duas crianças se entreolharam, e então olharam para o tio. Por um minuto, pareciam sem saber o que dizer, mas então a menina disparou a falar:
-Não acredito que o senhor tá dizendo isso! Vou contar tudo pro meu pai, que o senhor chama ele de mentiroso e tudo!!
O tio sorriu e se virou para o menino:
-Muito bem, rapazinho, ela já disse o que acha; agora é sua vez. E se as histórias dos Deuses forem só fantasia, o que você acha disso?
Dessa vez o menino ficou confuso. Novamente, parecia sem saber o que dizer, mas gaguejou algo:
-Tio… eu não quis dizer que a mãe e o pai são mentirosos… eu só disse o que minha professora me disse.
-Esse é o problema das línguas jovens; rápidas como a espada de Nuada, com uma cabeça menor do que as avelãs da sabedoria do Poço de Néchtan. A palavra dita não volta, jovenzinho, e se ela foi lançada, agora temos de lidar com ela. E então? E se as lendas dos Deuses forem só fantasia?
-Isso quer dizer… que a mãe e o pai mentiram?
-Mas é claro!! Seus pais são mentirosos, e não só eles! Os seus tios, pais dela, também são! E os avós de ambos, que já embarcaram em sua viagem para além das nove ondas, também mentiram! Mais do que isso, você também acaba de me chamar de mentiroso, na minha cara; podemos dizer isso aos seus pais?
-Não, tio, por favor, eu não quis…
-Eu sei que não quis. Mas disse. E agora vai ouvir a resposta. E você também, mocinha. Bom, a verdade é essa; os mitos, as lendas, as histórias dos Deuses, eles são verdadeiros, por isso não somos mentirosos. Mas não quer dizer que essas histórias tenham acontecido dessa forma; vocês entendem isso?
As duas crianças olharam para ele, mais confusas do que nunca. Ele não se importou, sabia que não seria fácil; então continuou:
-Contamos a história para vocês sobre a Batalha de Magh Tuiread. Sobre como os Deuses batalharam nas colinas da Irlanda. Pela lenda, essa história ocorreu no Velho Mundo, em uma ilha verde distante no mar. Mas já explicamos a vocês o sentido dela também; mesmo que sejam muito novos, vocês já viram que há mais na história do que aquilo que só as palavras dizem. Essa é a verdade por trás do mito. Os Deuses realmente lutaram nas colinas da Irlanda. Não sabemos. O mundo moderno dirá, certamente, que não. Mas a verdade por trás do conto é universal, e ele torna a sua história verdadeira, quer ela tenha ou não acontecido dessa forma. Já vimos essa história em outras formas; vocês ouviram a Batalha das Aves antes disso. Ela conta exatamente a mesma história, mas de uma forma diferente; em vez de Tuatha Dé Danann divinos e Fomorian titânicos, temos aves e ratos. E ainda assim, a história é a mesma, as lições a serem aprendidas são as mesmas. Por isso as lendas são verdadeiras em toda a sua essência, e as palavras que usamos são apenas a forma com que expressamos essas verdades que os Deuses nos legaram.
-Mas tio,- começou a menina- se as lendas não aconteceram do jeito que aconteceram, como elas aconteceram?
-E quando?- continuou o menino.
-As lendas ocorrem fora dos limites do tempo e do espaço. Que importa se um dia os Deuses lutaram realmente nas planícies da Irlanda? O que isso tem a ver conosco? As lendas são as histórias que sempre são, ainda que possam não ter ocorrido de uma forma que nos seja clara. Elas são verdadeiras, pois nos ensinam as lições que temos de aprender, mesmo que as palavras para as lições não sejam sempre as mesmas. Algumas lendas podem ser datadas, pois falam de homens mortais; outras são mais difíceis, pois estão no tempo que não pertencem a nós. Só sabemos que são verdadeiras por suas lições. E é nelas que temos de confiar, pois elas são verdadeiras, nos tornam pessoas melhores e nos colocam em sintonia maior com a Terra ao nosso redor.
As duas crianças ficaram olhando o tio por um tempo; então ele continuou:
-Agora, seus dois pequenos fomorianos, sumam daqui e me deixem em paz!! Mostrem que aprenderam alguma coisa hoje e respeitem a um velho que quer sentar sob sua árvore para pensar!
As duas crianças saíram de perto do tio em silêncio. Ele ficou parado lá, pensando. Ele confiava nas lendas. Ele sabia que elas eram verdadeiras. Pois ele sabia o que elas ensinavam a ele; ensinavam honra, hospitalidade, comunidade; ensinavam humor, ensinavam coragem, ensinavam sabedoria; ensinavam o lugar da Tribo na Terra. E ele sempre seria grato aos Deuses por essas lições, a Nuada, a Lugh, à Morrighan, ao Dagda. Pois esses eram os Deuses que surgiram aos homens quando as lições foram aprendidas, eles foram os professores. Importava se elas tinham ocorrido daquela forma? Não, importava que o que elas ensinavam era verdadeiro, tanto para outros tempos quanto para outras terras. Ater-nos mais à forma com o qual elas foram contadas do que ao seu sentido é nos ater ao superficial, à casca que esconde a beleza mais profunda no fundo. É lá que encontramos aquilo que as torna verdadeiras.
Publicado originalmente em barddkunvelin.wordpress.com