O Aprendizado
Fínd observava enquanto as pessoas do clã guiavam o seu gado entre as duas enormes fogueiras que estavam acesas sobre a colina. Durante todo o dia eles haviam festejado, banqueteado, mantido antigas tradições e, mais intrigante de tudo, realizado pedidos tradicionais aos antigos Deuses, e estes já não eram mais os cultuados ali. O Beltane realizado em Iwerddon ainda era um Belotenes, mais do que qualquer outro que Gwaltwent havia visto na sua Brittania natal mas, ainda assim, era ao deus cristão que o povo daquela região dirigia sua devoção. Eles tinham o conhecimento das tradições, mas não tinham o conhecimento do motivo da existência dessas tradições. Na manhã seguinte, os homens jovens partiriam com o gado, se separando da Tribo, e nem sabiam o significado profundo de suas práticas, não sabiam os mitos, e não sabiam a origem dos ritos e tradições que haviam acabado de realizar.
-Em que está pensando, jovem Waltwentos? – perguntou Fínd; o velho druida irlandês era uma alma gentil, muito menos rígido do que Yannet, que estava ocupado degustando sua cerveja de mel e conversando com uma senhora viúva local.
-Mestre Druida, estou pensando que tudo é tão estranho; esses cristãos realizam os ritos antigos, mas não sabem nada sobre eles; não conhecem mais as histórias dos Deuses além dos fragmentos que permaneceram na memória dos velhos, não conhecem mais o significado por trás das duas fogueiras, a proteção do gado, as oferendas ao Pai de Todos pedindo pelo crescimento da colheita, ou à Brigantia das Três Chamas para que a Tribo sobreviva até a nova ceifa da Terra; eles praticam o Belotenes e nada sabem sobre ele. O senhor acha isso certo?
O druida irlandês riu levemente, e levou o chifre com a cerveja à boca. Ainda estava rindo quando se virou para ele novamente.
-Há uma certeza sobre mim, jovem; se eu chamasse “Iannaid”, um cajado atingiria sua cabeça agora. Mas eu quero que você me diga, então: por que você sabe coisas que essas pessoas não sabem?
-Porque é parte do treinamento do Druida, mestre; conhecer as lendas dos Deuses, seu significado, a história do povo, as leis e regras das tribos, os motivos pelos quais são realizados os ritos, sua forma e suas práticas…
O velho druida irlandês ergueu seu chifre de cerveja, quase como em um brinde, mas que foi o bastante para fazer o mais jovem se calar; então foi a vez dele falar:
-“Iannaid” tem razão; há em você uma ótima mente para assuntos complexos, mas você ignora o próprio sentido simples das coisas. Você sabe tudo o que sabe porque é esperado que um Druida saiba; essa é sua função, e seu fardo para o resto de sua vida. Sua função é saber, e sua função é ensinar. Mas não se ensina aquele que não quer aprender. Ninguém o forçou a trilhar o caminho do Druida, “Faltfénd”,- a pronúncia do nome fez com que Gwaltwent estranhasse, mas entendeu que era seu próprio nome ali, pronunciado à maneira irlandesa- você decidiu por si só, e por seu desempenho você aprendeu a linhagem dos reis, a origem das tribos, as lendas dos Deuses, os segredos da tradição; isso tudo é esperado do aprendizado do Druida, é claro. Mas não é tudo; o aprendizado, quando se torna apenas uma coleta de conhecimento, torna-se como uma espada que não sai da bainha, torna-se com a água que fica parada. O conhecimento deve fluir, não ficar acumulado na cabeça de uns poucos, onde ele não serve de nada. O conhecimento segue o padrão da Bilios, jovem Druida, mas ele não é sempre tão duro quanto um carvalho; para nós é assim, pois somos Druidas, e isso é esperado de nós. Para outras pessoas, ele é mais maleável e flexível, mas ele ainda se espalha como as raízes subterrâneas, bebendo das águas ocultas do mundo, lar dos Ancestrais do passado, subindo e nutrindo a nossa tradição e nos fazendo crescer, para que nossos galhos possam se beneficiar das bênçãos dos Céus trazidas pelo sol e chuva. Assim, importa tanto se o conhecimento é rígido como um carvalho ou maleável como uma bétula? Essas pessoas mantem o conhecimento vivo dentro da comunidade ao seu próprio modo, porque elas não são Druidas, mas isso não quer dizer que elas não tenham aprendido. Elas ainda passam o gado entre duas fogueiras, pedindo por proteção e o crescimento seguro, mesmo que não estejam mais seguindo uma cerimônia oficiada por Druidas. Eles ainda ofertam leite e mingau à Terra, pedindo pela maturação do grão, mesmo que não peçam ao Bom Deus, o Pai de Todos, ou à antiga Deusa das Três Chamas, mas ao deus cristão, e uma “santa” que utiliza o manto da sua antecessora. Mesmo assim, o conhecimento está sendo aplicado, e sendo utilizado, mais do que guardado simplesmente na cabeça de um jovem druida aprendiz. Hoje, eles não só preservam o aprendizado do passado, mas o passam adiante, mesmo que de uma forma diferente. E no futuro, as tradições deles serão tão lembradas e dignas de aprendizado como hoje são as tradições de seus ancestrais. Eles fazem o aprendizado andar, enquanto nós, Druidas, estamos caminhando para o final de nossa jornada. Não devemos desprezar nunca o nosso aprendizado tradicional, com seu mito, sua história, sua filosofia e regras, ele é a base com que podemos definir quais de nós estão a realmente caminhar pelo caminho do Druida; mas também não devemos menospreza o aprendizado simples, maleável e mutável, que o povo nos lega. No final, sempre fomos nós a ensinar o povo, e hoje estamos prestes a desaparecer; não seria o momento, então, de o Druida aprender com o povo?
Gwaltwent ficou um tempo pensando em alguma resposta para o velho irlandês; não conseguiu nenhuma antes que um banho de líquido frio caísse por cima de sua cabeça, gelando-o até os ossos. Yannet havia derramado todo um chifre de cerveja sobre ele.
-Fínd, meu aprendiz está incomodando você?! Se precisar que eu dê uma lição nele, é só dizer!- ele estendeu o braço para o druida mais velho, que se levantou rindo- Escute, preciso que me fale um pouco mais sobre aquela viúva, sua família, coisas que preciso saber sobre os hábitos da região, essas coisas…
Os dois druidas velhos partiram andando, conversando animadamente, enquanto o aprendiz tentava se enxugar do banho de cerveja recebido…
Publicado originalmente em barddkunvelin.wordpress.com