A Conexão

A lagoa estava plácida e calma; suas águas não eram as mais cristalinas do mundo, tinham um tom esverdeado, mas o homem sabia que eram límpidas e guardavam vida. No seu interior era possível ver pequenos peixes, e girinos também. Esse corpo d’água, não tão grande, nem tão pequeno, era alimentado por um fluxo subterrâneo que certamente vinha de um rio que corria próximo. Ao longo de seu curso ele cruzaria com uma cidade e se tornaria um dos muitos rios mortos do mundo, mas ali, naquele lugarejo isolado, sua nascente repousava oculta, e ele crescia lentamente; a lagoa era um de seus braços. Ali o homem se deteve por algum tempo em contemplação, agradecendo aos Deuses pela oportunidade de estar ali, e aos Espíritos da Terra pelas bênçãos que aquela região sempre trazia. Enfiou a mão em uma bolsa presa ao cinto, um “spórran” vindo de terras distantes, e dali tirou um pequeno punhado de farelos. Olhou firme para o lago, fechou os olhos, respirou e…

Parou. Ouviu um som atrás de si. Com uma olhadela, ele percebeu que seu sobrinho se aproximava dele. Suspirou e sentou-se na grama, pois sabia que o garoto nunca vinha até ele com apenas um recado. E realmente a criança se sentou ao seu lado, e ficou olhando para o lago.

- Se você não me perguntar, não terei como responder, – disse o homem, após um breve período de silêncio entre os dois. O menino parecia envergonhado, com o rosto um tanto ruborizado. Mas perguntou mesmo assim:

- Tio, como você sabe que os Deuses existem?

O homem franziu a testa. Ele também já havia se perguntado isso, mas achava que era muito cedo para o garoto já se preocupar com aquilo. Mas se era o momento, então ele se forçou a perguntar:

- Por que me pergunta isso agora?

- Tio, nós fazemos muitas coisas para os Deuses; nós rezamos, nós agradecemos, nós celebramos suas festas e conhecemos suas lendas. Mas como sabemos se eles existem? E se existem, como sabemos que se importam com o que fazemos?

O homem pensou por um momento; o seu sobrinho estava crescendo, realmente. A pergunta havia sido articulada corretamente, e ele sabia que precisava de uma resposta dada corretamente:

- Eu já lhe contei muitas lendas, garoto, e você deve ter escutado muitas mais por aí. Acho que já explicamos muitos dos sentidos por trás deles, não é?

- Sim, senhor.

- E quando seu sentido foi explicado, os contos deixam de ser só histórias; eles passam a ser as verdades regentes da existência. Talvez nunca conheçamos toda a verdade, mas com certeza conhecemos a parte da verdade que nos cabe. Você entende isso?

- Acho… que… sim…

- Muito bom, pois agora sim vamos para a sua pergunta; o mito é uma alegoria, uma história contada de uma forma para explicar uma verdade maior. Se ele é real, mesmo que a história não tenha ocorrido exatamente da forma em que está no mito, aqueles que estão nele também são reais; foi assim que os Antigos preservaram sua sabedoria muito tempo atrás. Bríghid, Lugh, Dagda, Manannán, todos são tão reais quanto eu e você, pois são ligados a verdades da existência e do espírito. Eles apenas existem em forma diferente do que a nossa, mas eles ainda são nosso povo e nossa Tribo.

O garoto pareceu confuso por um tempo, e o tio não teve certeza se ele entendeu a resposta. Claro, ele era muito novo, e se ele falasse mais o garoto podia ficar até mais confuso; por isso, o tio preferiu esperar antes de continuar falando.

-Tio, como você sabe que eles respondem? Como você sabe que eles se importam com as coisas que fazemos?

O tio sorriu. Essa pergunta ajudaria a sanar as lacunas que a outra deixou.

-Nossos Deuses são espíritos que personificam a Tribo e a Terra, garoto; eles existem naqueles lugares que aprendemos onde estão. Nós nos conectamos com eles de muitas formas, mas sempre de um jeito que seja apropriado a cada um. Rezamos todas as noites para que nosso sono traga o repouso, assim como rezamos todas as manhãs para que nosso dia seja abençoado; aos Deuses damos nossa devoção, mas não em troca de bênçãos, apenas em reconhecimento àqueles que nos legaram tantas lições, e pedindo humildemente sua benção. Não pedimos nunca aos Deuses que façam algo por nós, mas pedimos que nos fortaleçam e estejam ao nosso lado através da vida, como membros de sua Tribo. Quando sentimos que os Deuses estão conosco, somos mais fortes; então agradecemos a Eles por estar conosco. Nossas orações utilizam símbolos dos Deuses, da Terra, e da nossa tradição para homenageá-Los. Pois os Deuses estão em nossos atos e na Terra ao nosso redor. E tanto os Deuses da Tribo quanto os da Terra (e a maioria deles é tanto da Tribo quanto da Terra) recebem a nossa devoção. Muitas vezes fazemos oferendas aos Deuses, mas entenda, não podemos dar aos Deuses nada que eles não possam ter; a oferenda é um sinal da devoção a Eles, nada mais que isso. E nessa relação de reciprocidade, ao mostrar que os respeitamos e estimamos suas capacidades, esperamos que sejamos respeitados e estimados também. Por vezes, recebemos as mensagens dos Deuses de várias formas, por vezes as buscamos na forma do oráculo. Mas se você quer sentir o papel dos Deuses em sua vida, tenha-os nela! Você saberá da Sua existência, no recitar de uma lenda, na emoção de uma canção antiga, nos valores da coragem, da honra, da hospitalidade, na alegria de uma dança entre aqueles que tem os mesmos Deuses que você; eles estão presentes no vento, no sol e na chuva, e você pode agradecer a Eles pela beleza das árvores, a imponência das montanhas, pelos ciclos da Terra, e também pelas coisas mais simples, como o prazer de conversar a beira de uma lagoa. O Sagrado, garoto, está no mundo, na Terra e na Tribo, e perceber o Sagrado é perceber que ele está nas grandes coisas e nas pequenas. Só assim se aprende a valorizar a Terra, a Tribo, e só assim é possível entender o que é digno de louvor, devoção, e agradecimento.

Ele pegou a mão do garoto, e colocou o punhado de farelo que havia na sua. Os dois ficaram olhando a lagoa; ali estava a vida correndo, vindo direto de uma deusa dos rios, com seus filhos, peixes, sapos, rãs, girinos, plantas marinhas, todo um mundo próprio, existindo dentro da lagoa. O menino respirou fundo, sentindo o ar puro entrar em seus pulmões, e entendeu a gratidão; fechou os olhos, e ouviu o som das aves cantando, do vento soprando na grama, e isso trouxe antigas lendas à sua cabeça, dos antigos guerreiros que viajavam por uma ilha distante, demonstrando coragem, honra, hospitalidade, mas também respeito e poesia, louvando a beleza da Terra, bem como aos valores da Tribo. Ele se sentiu grato, e pensou em pedir aos Deuses para não sair mais dali; mas sabia que os Deuses não lhe dariam nada que ele mesmo não pudesse fazer; pois então, ele só desejou que houvesse mais chances de voltar ali, e que Eles estivessem com ele até então. Quando ele voltasse, ele se lembraria sempre de agradecer a Eles pela lição. Ele abriu os olhos e lançou o punhado de farelo na lagoa; ele seria comido pelos peixes, absorvido pela Terra, a forma que os Deuses tinham de levar essas oferendas simples ao mundo espiritual. Mas ele sabia que ali ele estava dando a sua parte por ela, e estabelecendo sua própria conexão com os Poderes que estão além do mundo.

Publicado originalmente em barddkunvelin.wordpress.com

Wallace William
Enviado por Wallace William em 11/12/2013
Reeditado em 11/12/2013
Código do texto: T4607159
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