DIZ A LEI
Tecnicamente achava estar certo. Era tudo entre mim e meu íntimo. Ninguém naquela lata de sardinha sabia minha idade real, menos ainda que eu fingisse estar dormindo. Abri um mínimo cantinho de olho e lá estava a desgraça se esparramando na cara do meu cansaço. Lembrei do chefe boçal despejando ladeira abaixo da hierarquia todas as descomposturas de que era vitima lá no alto. E nós lá embaixo recebendo aquela merda verbal como camponeses da idade média recebiam os dejetos vindos de mosteiros santificados. Era minha sina de operário. Reforcei minha preguiça em cada fio de cabelo branco que ostentava. Até no meu saco já havia alguns. Lembrei da napa amarela a indicar que aquele assento era preferencial. Porra, havia outros; mas a velha empacou no meu. “Vamimbora, motorista”. “Ele não sai enquanto não aparecer lugar”, vomitou, aspergindo razão o cobrador, mais parecido com um pássaro empoleirado no seu espaço desconfortável. Dê você o lugar, corno, gritei mudamente. “Vambora, seu...” Àquela altura já se instalara uma pequena rebelião contra o motorista renitente. A velha continuava ali, amuada. Abri preguiçosamente os olhos, num fingimento profundo de quem retornava de muito distante. Levantei-me. A banha flácida aninhou-se na napa amarela e o motorista começou a acelerar.