ENTRE SACHER-MASOCH E SADE
“Uma parte do sujeito conhece a realidade, mas suspende esse conhecimento, enquanto a outra parte se suspende no ideal.”
Gilles Deleuze
Tocou o telefone. A mulher atendeu ansiosa. Era ele. O homem construído em sua imaginação distante das vivências... Os traços acompanhados da voz pausada e forte, o perfil ecoado nos sonhos idealizados do verdadeiro encontro. O mistério... Primeiros arrepios rabiscados nas palavras tão verdadeiras daquele desconhecido.
João dedicara a vida inteira ao trabalho. Quarenta anos, solteiro e sem filhos. Apresentara-se como um homem de formação tradicional e que não encontrara a mulher ideal nos lugares comuns. Construir uma família é algo muito sério! Exclamava ressentido com a falta de compromisso das pessoas. As noites eram entregues à solidão e ao cansaço, algumas vezes sonhava com a felicidade em sua cidade natal, a família reunida e a certeza de continuidade... Ele crescera na vida, mas não conseguiu amadurecer a alegria na fotografia antiga.
Maria foi levada junto às circunstâncias. Mãe ainda adolescente, teve de cuidar do filho sozinha e amadureceu aprendendo a se responsabilizar pelo outro. Apesar de não ter concluído os estudos, conseguiu um emprego de balconista em um barzinho no centro. Sentia orgulho de sua independência ao tempo que se distanciava do mundo, mantendo-se alheia às cantadas dos velhos bêbados e às falsas promessas de homens descompromissados.
O encontro improvável iniciou com uma ligação para uma rádio local que promovia os primeiros contatos no programa “First Moment”. João e Maria começaram uma intensa relação por telefone e, aparentemente, sentiam os mesmos receios e anseios. Aos poucos suas vidas eram desveladas e percebiam que ambos desejavam a mesma família, dentro da mesma casa aberta ao mundo com as mesmas janelas.
O primeiro encontro foi marcado no Calçadão do centro da cidade. No Café reconheceram as roupas descritas, aproximaram-se e, com alguma timidez, iniciaram o diálogo. Era mais difícil falar na presença. O corpo do outro sombreava algum constrangimento. Maria sentiu-se uma adolescente, insegura com as palavras e os gestos, João falava demais. A insistência em afirmar o seu “eu” poderia sugerir uma certa insegurança, contudo, Maria estava tão nervosa que não percebeu...
As horas passaram rapidamente e, logo, a possibilidade de estar era concretizada com a voz rouca ao telefone e os ecos das doces palavras ao adormecer.
No segundo encontro, no Passeio Público, Maria levou a fotografia do filho adolescente. Caminharam de mãos dadas, comeram pipoca, trocaram tímidas carícias, falaram sobre religião e filhos, ensaiaram ternos beijos... João falou, com orgulho, sobre o seu trabalho. Era representante comercial e, nos últimos meses, aumentou bastante seus rendimentos com novos clientes. Atribuiu a Maria o sucesso: sorte no amor impulsiona o trabalho.
Deixaram que o momento escrevesse em seus pensamentos o erotismo imaginário, a distância dos dois do mundo vulgar, marcava com brilho os ideais de um casamento feliz e para sempre. Maria sentia os ombros contraírem com o suave dedilhar de João e deixava o arrepio fluir no sonho de um amanhã. O olhar denunciava, porém era necessário mostrar que a alma não estava corrompida com os prazeres e esquecimentos do mundo.
As ligações se tornaram mais constantes. Todos os dias eram marcados com pequenas declarações de saudades. As conversas só eram interrompidas pelas altas contas de telefone. João só tinha um telefone celular. Até aquele momento toda sua vida fora móvel e provisória...
Dias de inquietação. João estava fechando um grande negócio e teve de fazer algumas viagens. A saudade aumentava e o coração de Maria disparava a cada chamada. Por uma dessas infelicidades, João danificara o seu aparelho telefônico e os contatos tornaram-se breves. Ligações em orelhões são constrangedoras, sempre tem alguém ouvindo...
Marcaram um novo encontro na frente de uma pequena capela. João chegou com um riso nos lábios e um ramalhete de flores. Pela primeira vez trajava um terno. Maria estava muito elegante com um vestido azul claro. Sentaram-se no último banco da capela e conversaram com as mãos entrecruzadas sobre os sonhos. Quem sabe no final do ano... João confidenciou que casar naquela igreja era o seu sonho. Maria, com os olhos molhados, teve a certeza de que encontrara sua alma gêmea.
João tentou dissimular, mas sua feição traía suas preocupações. Maria insistiu e descobriu que João estava passando por algumas dificuldades. Havia realizado um grande negócio e só receberia em sessenta dias. Estava descapilalizado apesar de ter crédito. A falta do celular dificultava a realização dos negócios cotidianos. Para um representante comercial, a comunicação é tudo. Fazer o quê? Tinha de receber para comprar um novo aparelho à vista. Como não tinha comprovação de renda, as financiadoras apresentavam muitos obstáculos...
Não havia problemas. Maria não ganhava bem, mas tinha carteira assinada. Foram rapidamente até uma loja e adquiriram um modelo moderno, pré-pago, com ampla cobertura e que inclusive tirava fotografias. Financiamento em doze vezes. Maria apresentou a documentação e recebeu o carnê com as parcelas. João pegou o aparelho e os documentos, com a autoridade do verdadeiro comprador, e guardou-os no interior do paletó.
Ainda tiraram uma foto na porta da loja. A primeira...
No dia seguinte, João não ligou... Maria estava tão envolvida com a decoração da capela e outras elucubrações que esquecera de pegar o número do novo celular e não guardou documentação alguma... No final do dia, entristecida, ela se convenceu com uma desculpa qualquer, talvez ele tivesse telefonado enquanto ela estava no banho...
Maria retornou à loja, buscou algum cadastro. Tudo em vão, a documentação estava toda em seu nome. Não havia vestígios de João, nem os vendedores lembravam do homem que a acompanhava. Tentou ligar para o número que lhe deram, todas as ligações caíam na caixa postal com uma mensagem em inglês... Maria tentou encontrá-lo, ligou para a rádio, foi nos locais que ele falava, andou sem rumo pela cidade, mas ninguém conhecia o João. Talvez um sonho... Até pouco tempo tão real e agora apenas um espectro de homem que ninguém conhecia, nem mesmo Maria. Será que o nome dele era João? Será que era casado? Louco? Ela ficou preocupada. Demorou até sentir raiva... Ele parecia um fantasma que só assombrava a pobre mulher e escurecia seus sonhos com o breu de um desconhecimento. Ela pensara até em casamento! O que fez de errado?
Um dia recebeu uma correspondência da loja com os lançamentos em aberto e o aviso de que seu nome estava no SEPROC. Não bastasse a desilusão, havia esquecido das prestações. Ele também levara o carnê...
Ela estava perdida, sentia sua rotina aniquilada por um desconhecido e não conseguia falar com ninguém. Sentia pena de si própria e vergonha de sua ingenuidade. Atravessou algumas madrugadas com a impressão de que ele havia morrido. Criava novos fantasmas, assustava-se com o luto e sentia-se culpada.
Entre o masoquismo e o sadismo, tão recorrentes nos temas eróticos, encontramos seres com psicopatologias banais, que além dos chicotes, dos contratos de submissão, das transgressões aos interditos, das dores e dos prazeres lancinantes, ressentem-se apenas por não ter uma cara-metade para que possam sentar num parque e realizar os pueris sonhos que foram levados nas correntezas da vida.
Distante de Justine e Vênus das Peles, fortes personagens dos envolventes enredos de Sade e Sacher-Masoch, Maria continua anônima em busca do amor. Sem grandes atrativos para a leitura, abandono a narrativa na solidão de Maria.