O Valente Caído
Sim, era ele... Sem dúvida! Estava bem mais magro, cabelo comprido, todo desgrenhado, barba por fazer. Os olhos azuis, que antes eram inquietos, agora pairavam em algum ponto distante. Estava sem camisa, sobre a cama, recostado na cabeceira, olhando pro nada. O local fedia. Com certeza se encontraria roedores por ali, naquelas caixas de papelão cheias de quinquilharias. Por um momento me vem um senso crítico sobre como uma pessoa poderia viver num local como aquele. Num cômodo de três por três, havia uma cama num canto, aos pés uma pequena mesinha com uma televisão antiga de 14 polegadas. Ao lado dela, abaixo da janela, uma prateleira improvisada, com tijolos e algumas ripas, sobre as quais, guardava algumas panelas, ainda sujas do almoço que fizera no dia anterior. Ao lado um pequeno fogareiro com o botijão de gás. A porta de entrada, e, na parede oposta à da cama, um pequeno guarda roupas, que além de roupas servia também para guardar alimentos. Um pequeno frigobar, velho, ainda funcionando, sobre o qual ia acumulando outros badulaques. Nas paredes, alguns pregos com sacolas cheias de outras velharias, penduradas. Um cenário que eu não acreditaria se me contassem. Pensaria ser impossível viver num local como aquele. Mas não. Ali estava ele. No início, quando me falaram seu nome e as condições em que vivia, tive alguma dúvida. Não poderia ser. Poderia ser algum homônimo. Poucas pessoas sabiam seu nome verdadeiro; eu, por acaso, era uma dessas pessoas. E jamais me esqueceria. Enrico Palhares, o homem que me salvara a vida, há muito tempo. Mesmo após tantos anos sem ter ouvido notícias suas, e quase ninguém se lembrar dele, a não ser os mais velhos, assim que pus os olhos sobre aquela figura, o reconheci logo. Apesar de bem diferente, não havia dúvida. Era realmente ele, o homem que outrora todos temiam e conheciam como Rico Palha.
Lembro-me da primeira vez em que falei com ele. Eu era um garoto, de doze anos. Estávamos, eu e dois amigos, nadando na represa, quando chegaram dois rapazes, e do nada, nos pegaram pelos cabelos e afundavam por longos períodos, nos afogando. Davam risadas, se divertiam. Não sei quanto tempo, mas creio que se passaram meia hora, naquele jogo de apneia. Eu já estava exausto, não agüentava mais. Debaixo d’água senti que ia perder os sentidos quando fui solto repentinamente. Num instinto de sobrevivência, reuni o que restava das forças e consegui alcançar a margem, quase vomitando, enquanto procurava inspirar o máximo de ar possível. Nesse mesmo tempo ouvi pela primeira vez a sua voz. Uma voz forte, determinada:
- ... seu bando de vagabundos. O que acham que tão fazendo? Saiam da água.
- Ô Seu Rico... era apenas uma brincadeira – tentou amenizar um dos rapazes.
- E lá isso é brincadeira que se faça? Querem matar os moleques? Porque não enfrentam homens de verdade? Caiam fora daqui!
Rico Palha, que empunhava sua arma, calibre trinta e oito, começa a descarregar o tambor atirando no chão, aos pés dos rapazes, enquanto esses fugiam. Parecia cena de filmes de faroeste. Jamais vou esquecer aquele dia. Rico Palha não era homem de sentimentalismo, não ajudava ninguém. Pelo contrário. Era considerado um homem mau. Portanto não me perguntem a razão daquele gesto porque a grande virada em sua vida se deu muito tempo depois. E virando-se pra mim e pros meus amigos:
- E vocês? Parece que não tem nada pra fazer, seus moleques!
- A gente só tava tomando banho...
- Rispa já daqui, vocês todos!
Íamos saindo quando ele diz:
- Espera – e apontando pra mim – Você está bem?
- Tô – respondi enquanto balançava a cabeça positivamente.
- Então sumam daqui.
Seu Rico era temido na região, um homem truculento. Resolvia seus problemas sempre com brutalidade, sem aceitar argumentos. Não sentia pena por ninguém. Sua fama corria longe. E, como dizem por aí, “quem conta um conto aumenta um ponto”, não se sabe ao certo se tudo era realmente verdade. Aqui, pretendo eu me ater aos fatos como me foram contados ou mesmo presenciado por mim. As conclusões eu deixo por conta de vocês mesmos.
Rico Palha perdera o pai quando tinha apenas doze anos. Dizem os mais velhos que sua mãe se casou logo em seguida. De início tudo corria bem entre o padrasto e a mãe, mas logo começaram as brigas. Frequentemente o padrasto chegava bêbado em casa. Vez ou outra surrava Rico com um chicote que mantinha atrás da porta da cozinha, o qual era também usado para espantar o cachorro. Foi numa dessas vezes em que apanhou que Rico ficou sabendo que fora o padrasto que matara seu pai. “Eu ainda acabo te passando na peixeira! Igualzinho fiz com teu pai. O porco estrebuchou implorando pr’eu pará!”. Foi, penso eu, neste momento que planejou livrar-se dele. Sabia onde era guardada a arma. Sabia a rotina. O padrasto brigava com a mãe e saia pra beber. Tinha tudo planejado. Um dia o padrasto saiu pra beber e não voltou mais. A mãe de Rico estava sozinha em casa quando recebe a visita da polícia reportando a morte do marido com dois tiros no peito. Rico chega pouco depois surpreso com o acontecido. Mais um crime investigado pela polícia, sem solução. A vítima tinha tanto desafeto, poderia ser qualquer um. E sua mãe nunca fizera qualquer comentário sobre o sumiço da arma.
Rico Palha deixa o colégio. Não tinha tempo pra estudo. Tinha que ajudar a mãe no sustento da casa. Vivia fazendo bicos aqui e ali. Sempre um serviço misterioso, ou dinheiro recebido por um serviço declarado à mãe que não valia aquela quantia. A mãe nunca questionou. Havia sofrido muito na vida, não queria mais incômodo; achava melhor olhar pro outro lado e fingir ser tudo lícito.
Contava-se por aí que certa vez recebera a incumbência de receber uma dívida prum figurão da cidade, de um caloteiro que mudara-se de cidade e torrava a grana que recebia sem honrar seus compromissos. Enrico conhecia de vista o sujeito e sabia ser ele torcedor do Cruzeiro. Ele chega na capital mineira e entra no Mineirão pro jogo Cruzeiro x Atlético, sendo um dos primeiros a entrar. O tempo vai passando e o estádio fica lotado. O jogo começaria dali a pouco. No meio daquele mar de gente, Rico encosta-se atrás do sujeito e encosta a arma nas suas costas, convidando-o a saírem dali. No dia seguinte ele chega à nossa cidade entregando a “encomenda” pro figurão. Não acredita? É... É o que o povo diz...
Desde muito novo sempre gostou de vestir-se bem. Calça e camisa em estilo social, muito bem cortados. Barba sempre feita, cabelo preto e sempre penteado pra trás, olhos azuis, porte atlético. Bonito e vaidoso. Tinha como sustentar esse estilo. Mas nos negócios era cruel. Não perdoava erros.
Acredito que cada pessoa venha já “de fábrica” com certa índole, e aqui apenas aperfeiçoa segundo a oportunidade. Eu, por exemplo, tive uma vida parecida com a dele... Bem, pelo menos no início. Nunca cheguei a conhecer meu pai. Minha mãe sempre disse que ele havia sumido e depois soube de sua morte. Sempre que eu perguntava me dizia meio por alto, sem muita firmeza nas palavras. Nunca a vi namorar, ou mesmo, qualquer flerte com algum homem dali. Sempre séria, sustentava a casa costurando. Sempre tinha dinheiro pra pagar meus estudos, comprar material e sustentar a casa. Nunca me faltou nada, é verdade, mas não tive um pai. E desde muito cedo procurava um ou outro pequeno serviço com alguma remuneração pra não sobrecarregar minha mãe. Às vezes fazia alguma compra a prazo, mas quando ia pagar, esta já havia sido paga; apenas me falavam da quitação, sem nunca saberem ao certo por quem. Sempre imaginei ser minha mãe.
Quando minha mãe chegou à cidade já estava grávida de mim. Saiu de casa após brigar com seu pai, devido à gravidez sem um casamento. Corajosa, sempre enfrentou seus problemas, e jamais fugiu de suas responsabilidades. Soube também, bem mais tarde, que Rico Palha, que morava em uma cidade vizinha, aparecera mais ou menos na mesma época. Parece que se conheciam de vista, mas nunca haviam se falado. Pelo menos assim me disseram.
Depois que me livrou dos rapazes que estavam me afogando, senti-me em dívida com Seu Rico. Podiam falar o que fosse dele, não importava, eu sempre estaria de seu lado. Sou o tipo de homem à moda antiga. Daqueles que prezam a honra e a palavra dada, coisa rara hoje em dia. Mas enfim, como estava dizendo, passei a admirar a coragem e a postura daquele homem. Sempre que possível o cumprimentava com todo o respeito. Aproximadamente dois anos depois, eu tomava um refrigerante na lanchonete do mercado municipal quando vejo Seu Rico vindo. Iria passar por mim. Ele me viu e eu sorri. Neste momento vi um movimento às suas costas e gritei:
- Cuidado, Seu Rico!
Instintivamente ele se abaixa ao mesmo tempo em que vira e alveja o homem com um tiro na testa. Um homem que estava próximo do sujeito, com as mãos bem à vista e levantadas, olha assustado pro corpo caído, olha pro Seu Rico e em seguida pra mim. Numa fração de segundo, em que Rico também me olha, o homem sai correndo, mantendo-se protegido por uma pilastra. É perseguido mas consegue escapar.
Naquele dia ele me levou em casa, eu apresentei minha mãe e o convidei pra jantar. Minha mãe gaguejou um pouco mas acabou reafirmando o convite, que foi aceito de pronto. Depois daquele dia, nos aproximamos um pouco. Em gratidão ao meu ato ele se propôs a pagar meu colégio e até minha faculdade, não aceitando recusa. Queria fazer de mim um doutor; dizia que eu merecia. Vez ou outra ele ia jantar lá em casa e saber dos meus estudos.
Cerca de um ano depois houve a morte de minha mãe. Um sujeito bateu à nossa porta pedindo ajuda. No dia seguinte esse mesmo sujeito foi encontrado morto com nove punhaladas pelo corpo, três pra cada uma que ele desferiu em minha mãe. A polícia nunca descobriu a autoria das duas mortes. Eu sempre soube.
No velório de minha mãe, ela passa a mão em minha cabeça, olhar caído e distante, nada diz. Sai em seguida, sendo essa a última vez que tinha visto.
Para minha surpresa, minha mãe tinha aplicações no banco com recursos suficientes para financiar meus estudos. A casa em que morávamos estava em seu nome, além de duas outras propriedade que estavam alugadas. Nesta época meu avô resolveu perdoar minha mãe e eu fui morar com ele. Voltei algumas vezes àquela cidade, mas ninguém sabia do paradeiro de Rico Palha. Havia desaparecido. Um terreno enorme que ele tinha quase no centro da cidade, havia sido doado por ele para a construção de um orfanato, o Lar das Crianças. Outras propriedades também haviam sido vendidas. Isso foi há quase vinte anos. Nunca mais ouvi falar dele. Virara uma lenda na cidade. As estórias atribuídas a ele eram tão fantásticas que muitos nem acreditavam que ele tivesse existido um dia.
Ontem à noite recebi aquele telefonema. Haviam encontrado o número em um caderninho que aquele senhor guardava numa gaveta com alguns documentos.
- Desculpe-me – eu disse – mas pode repetir o nome dele?
A senhora do outro lado da linha continua:
- Olha, está escrito aqui no documento dele: Enrico Palhares. Talvez o senhor o conhece ou conheça algum parente. É um aposentado e vive com muita dificuldade, coitado...
Fiquei um pouco assustado. Teria mesmo ouvido direito?
Agora estava eu ali, olhando para aquele homem. Era ele sem dúvida, mas totalmente diferente, em dignidade, daquele que eu conhecera. Estava acabado, não parecia lúcido... e, vivendo naquele chiqueiro! Uma barbárie!
Faço uma tentativa de me comunicar com ele:
- Sr Enrico. Sou eu. Lembra-se de mim?
Ele me olha nos olhos por um instante. Parecia me reconhecer mas logo depois seus olhos ficam vazios e voltam a fitar o horizonte. Não consegui mais tirá-lo daquele estado.
Peço à senhora que me acompanhava pra ficar a sós com ele. Entre uma tentativa e outra de comunicar-me com ele, procurava por alguma informação útil em seus pertences. Em uma caixa de ferramentas, num fundo falso encontro alguns papeis, envelopes, algumas cadernetas e algum dinheiro. Muito dinheiro pra alguém que vivia naquelas condições. Nas cadernetas haviam anotações contábeis. De imediato, li apenas a última. Constava os recebimentos de alguns aluguéis, aplicações e doações regulares ao Lar da Criança. “Mas então... Ele tem recursos. Não precisa viver assim” – pensei. No envelope, uma carta, escrita à mão, um testamento de próprio punho, onde expressava seu último desejo. Pedia perdão a quem quer que tenha feito mal, sem expressar qualquer nome. Deixava os imóveis pra mim. “Por que pra mim?” Vasculhando os outros papéis, verifico extratos bancários recentes, com boa quantia depositada.
Ele deixa tudo pra mim após sua morte. No momento, ele precisa mais do que eu. E é tudo dele. Eu sou advogado e tenho uma dívida com ele. Em minha profissão não há espaço pra sentimentalismo, mas ali é diferente. Aquela dívida eu honraria. Assumo a tutela daquele homem e cuidaria dele como se fosse seu pai.
Walter Peixoto
04/12/2013