A morte no poema
Nada mais cabe ao escasso poeta. Morreu sua musa. A sociedade está dispersa e lívida. Só ele permanece vigilante. O deus da vida colou junto a seus olhos duas lanternas cujas luzes constantes lhe empatam o mínimo cochilo. Perdeu o fervor e o léxico, perdeu linguagens inteiras. Não mais inova. Não mais propõe metáfora. Não mais convoca uma revolução. Veste-se civil e simples. Com o fim, a ele apenas sobram modestas migalhas, todas igualmente difusas. Talvez enverede-se no funcionalismo público. Ou pode dar a assustar religiosas nas esquinas sem luz. Pode fugir com cangaceiros. Estatisticamente, todavia, o poeta, sem norte, quase nada escolhe. Recreación! É seu último neologismo, seu derradeiro trocadilho. Torna-se um poeta-poema, à moda dos concretistas. E recreia indefinidamente em seu próprio loop de ópio.
De sua boca só sairão palavras sujas e velhacarias. A voz cacofônica e ferina. Bile e indiferença. Poesia, mito, caverna e sombra. Sombra, caverna, mito e peosai. Mito, sombra, piesoa e caverna. Língua viciada na diminuta dama: gírias, becos e formas. A cor é branca. E começa na ponta do dedo. Primeiro pé direito. Agora esquerdo. Pé pequeno. Um pé depois do outro. O pé e o poeta. O poeta e a loucura. Cinco dedos em eco no vazio mais impreciso. Pernas e tornozelos: um deserto de sal. A musa morta propõe o espelho. O jogo. E a charada. O poeta despreza a charada e o jogo. E atém-se a imagem e seu reflexo. A imagem que se transforma em vibração. Cor é sabor, sabor é cor. Num átimo, uma curva na altura do joelho, outra no ombro, uma terceira curva que se liga a outras: um desenho fantástico. Um poeta fantástico. Uma literatura fantástica. A palidez jamais se retrai e nas coxas ganha torno. Ganha volume, peso, cheiro, consistência. Pobre poeta, perde-se na miragem engano.
De coração partido, de fígado estragado e pulmões esfaqueados por demônios fumeantes, o poeta se confunde com a mecânica dos labirintos. Recreação. Retrorrecreação. Recreio. Recriação. Criação. Criatura. Criada. Recriada. Tudo a emular a vida, qual a própria vida emulando um código maior que o seu. Aos amigos o poeta escreve uma carta de suicídio por dia: destina e despacha. No dia seguinte, esquece-se. Assim infinitamente. O poeta é engenhoso. Finge sair à esquina, ouve uma história, compra cigarros, lê propagandas em silêncio. E, mais uma vez, retorna, carrancudo como chegou. Finge tudo isso no mesmo segundo. A musa, a história, os cigarros, o rancor. Ao poeta tudo é oficial. Nunca vê o fim. Herança, recados, terras a perder de vista... Nada mais toca ao poeta além de seu próprio nada.
Há, na vida dos poetas amaldiçoados por esta sorte, um dia crítico, sem solução ou retardo. Um caminho cego do qual não lhe é dada nem a potência de escolher retorno. Uma ladeira que se bifurca. Numa banda, apenas um desvio momentâneo que, outra vez, se encaixa na rota amena dos seres de solidão. Entretanto se lhe for imposto o segundo caminho, não há mais empreendimento a ser adotado. Resta somente a queda no vazio: a angústia eterna de uma vida finita. No último ato desta tragédia, ao desafortunado homem, mil lanças de prata esperam para lhe atravessar o corpo e a alma, no fundo de um poço de lama. Mas isso, só mesmo quando morrer o eterno.
Empoleira-se no ombro fatigado do poeta, neste dia, um pássaro maligno. E desta ave o poeta sempre se lembrará. Mesmo parecendo-lhe transcorridos trezentos decênios. Lembrar-se-á. De seu ombro jamais levantará voo definitivo. O pássaro pousa funéreo, sem proferir palavra, com silencioso gesto mortal. Uma ave sem canto que, inteira, confunde-se com os ícones de lixo da humanidade. Seu nome, todavia, não se desvenda por signos humanos. Não é negro. É azul. De um azul imóvel: que não reduz e não expande. Em uma única noite na vida deste homem a voz do pássaro será ouvida. É o Anjo da Miséria que trouxe sua mensagem de pranto.
O poeta tarda inerte, flutuando sobre a ausência de qualquer luz bruxuleante que não a de sua retina envelhecida. Sem rosto, sem nome, e sem amor. Apenas cinismo e tormenta surda. O poeta e seu anjo. O poeta e sua musa.