Um ato de insensatez
 
A temporada de caça estava aberta. O grupo de três homens e um guri chegou cedo à fazenda à margem da sinuosa Estrada do Cerne. Nos campos e telhados, ainda o branco da geada da madrugada que derretia sob os primeiros raios de sol.
 
Um dedo de prosa e uma rodada de chimarrão com o dono da terra, mais caboclo cria do lugar do que fazendeiro propriamente. Tudo muito simples, da casa ao curral e paiol de poucas ferramentas, e uma carroça polaca. A casinha lá no fundo. Só a moradia caiada, um tanto desgastada. Outras construções e palanques das cercas de arame farpado, madeira ao natural.
 
A mulher do fazendeiro ofereceu linguiça assada na chapa do fogão a lenha. Porco abatido na semana anterior. Tempero no capricho. Recusar, além de burrice, seria ofensa grave. Em seguida, os visitantes encaminharam-se para a mata com suas espingardas e embornais.
 
Pinheiros em profusão, imbuias que quatro homens não abarcavam. Cedros-rosa em ponto de corte. Bandos de papagaios fazendo alvoroço. Vez ou outra um pequeno grupo de jacus, ora ciscando o chão, ora empoleirados em galhos baixos. Ariscos e desconfiados, chance nenhuma aos caçadores. Pombas-rolas e rolinhas-roxas. Sabiás. Inambus.
 
Na mata, os quatro dividiram-se. O piá e o pai continuaram em frente. Os outros dois, cada qual para um lado. Combinado encontrarem-se no mesmo ponto no final do dia, antes de escurecer. Botas até os joelhos. No entanto, proibido citar jararacas e cascavéis. Dá azar. Boa sorte, então.
 
O dia não estava muito para os caçadores. Escassos tiros de espingardas carregadas com cartuchos artesanais de pólvora negra e branca ouviam-se ao longe. Um papagaio vinha ao chão atingido pelo chumbo fino da 28. Ou uma rolinha. Assustados, inambus esquivavam-se ligeiros no mato rasteiro.
 
Um riacho de águas rápidas encontrado providencialmente na hora do almoço. Pai e filho sentaram-se numa tora de pinho esquecida e o mais velho sacou do embornal o farnel. Pão com queijo e mortadela. Duas fatias de bolo de fubá com semente de erva-doce, que o carinho de mãe e esposa tinha enfiado junto, sem que eles tivessem percebido. Chá de erva-mate na garrafa térmica. Bananas de sobremesa.
 
Enquanto comiam, um ouriço cruzou a trilha rio acima. Pensou estar protegido nos ciscos do chão e parou do outro lado. O guri quis atirar. O pai fez sinal que não. Melhor ele. Calmamente trocou um cartucho da espingarda de dois canos, e com chumbo grosso abriu fogo. O animal tombou e ficou para o almoço do dia seguinte, em casa.
 
O turno ia terminando com poucas peças penduradas nas passarinheiras dos quatro. Só pássaro médio e pequeno. Nada de jacu nem inambu. Mas o ouriço valeu o dia de dois.
 
Quase ao mesmo tempo eles chegaram à pequena clareira de onde haviam se dispersado de manhã. Um dos homens puxou uma garrafinha de cachaça. Menos o guri, cada um deu um gole e pegaram a trilha que conduzia à casa do caboclo.
 
Quando já era possível ouvir distante o latido dos cachorros, um deles avistou um bugio solitário acomodado no galho de uma imbuia, deitando o olhar curioso e sem maldade sobre eles. Então chamou a atenção dos outros. Pararam admirados, pois que não era comum deparar-se com  exemplar da espécie apartado do bando.
 
Atendendo a um chamado do instinto animal, naquele momento mais abusado e irracional neles que no primata, os quatro simultaneamente apontaram as armas para ele.  Num rompante de perversidade, atiraram ao mesmo tempo.
 
O bicho despencou como um boneco de pano recheado de areia. Os quatro riram do feito, devolveram as espingardas penduradas pelas bandoleiras aos ombros e seguiram para a saída da mata.
 
No pátio, encontraram o fazendeiro com uma cesta de frutas enganchada no antebraço e bradando Chico! Chico! Olha a merenda, Chico!
 
Um deles perguntou quem era o Chico.
 
O homem respondeu que era um bugio criado na casa desde pequeno. A mãe tinha sido morta por caçadores de mau caráter. Vivia na mata, mas nunca se afastava muito do quintal, pois temia o confronto com o bando, que não o aceitava. Toda tarde, ele fazia um agrado ao macado com algumas frutas não encontráveis ali e que trazia da cidade. Sentia-se um pouco pai do Chico.
 
Cada um dos quatro gelou à sua maneira. Nesse momento caiu a ficha da besteira que fizeram. Um deles correu para a casinha, sem saber direito se a súbita dor de barriga era de arrependimento ou medo de eventual consequência. Conhecia a fama do homem. Bom toda a vida, desde que não fosse ofendido. Se descobrisse o crime que praticaram, certamente não sairiam vivos dali. Ou teriam de matá-lo primeiro.
 
Sem alongar conversa e alegando pressa, guardaram as tralhas no porta-malas do carro e saíram com o convite de voltar sempre e prometendo que voltariam em breve.
 
No trajeto para casa, nenhum deles encontrava ânimo para conversar. Permaneceram calados o tempo todo, com os olhos fixos na estrada de macadame iluminada parcamente pelos faróis do carro ou perdidos na escuridão das laterais. Tristes não só pelo ato insensato praticado, mas também porque sabiam que jamais poderiam retornar à região. Se o fazendeiro encontrasse o bugio morto, e certamente encontrá-lo-ia, de imediato identificaria os autores. E reservaria para eles castigo exemplar.


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N. do A. 1 - Conto baseado em fato verídico acontecido no início da década de 1960, quando a caça ainda era liberada no Brasil durante parte do outono e inverno. Antes, portanto, da Lei nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967, que instituiu o Código de Caça.

N. do A. 1 - Na ilustração, Bugio de Alessandra Fonseca.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 04/12/2013
Reeditado em 09/08/2021
Código do texto: T4598132
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