O pierrô caído
Você não sabe, mas não me vê.
É como se, agora mesmo, meu corpo e minha alma necessitassem de uma grande catarse. Uma grande catástrofe: uma purificação definitiva, uma amputação irremediável. Exatamente como se me perdesse no mais hostil abismo de minha paixão adoecida. É como se meus vícios não mais dessem conta de minha dose quotidiana de falecimento. E, agora mesmo, não sou eu que mastigo meu alimento. Não sou eu que, em silêncio, tomo esta estúpida xícara de café. Não sou eu que me esquivo, com brutalidade, de seu contato humano. É como um redemoinho cósmico no estômago que, paulatinamente, traga todo meu ser. Mas não estou adormecido. Não estou entorpecido. Sinto toda dor.
Sou cadeia alimentar inteiramente selvagem. É minha carne: devorada, destroçada e digerida. É meu sangue que escorre até coalhar. Como se eu morresse para viver e vivesse para morrer. Sem que feneça nenhum de meus sentidos, sou uma alegoria macabra e obsoleta.
Você não sabe, encontra-se totalmente ludibriada e utópica. Parece contente. A vida está perdida, meu bem. Mas isso eu não lhe digo. “Tranquilize-se, garota.”. Este é todo o meu relato de uma ilha demolida, radioativa.
Você não me enxerga com a mesma neutralidade com que, um dia, só teve olhos para mim. Monta-me saudável e belo em sua alucinação. Para você, sou bicho mitológico. Ou poeta opilado que se esqueceu de todos os nomes, menos do seu. Talvez, para você, eu seja figura barroca e irredutível.
Mas, meu bem, somente você não percebe que, lá fora, a realidade se desenha horrenda e intolerável.