Anestesia
"O que me assusta não são as ações e os gritos das pessoas más, mas a indiferênça e o silêncio das pessoas boas." (Martin Luther King)
Caía uma chuvinha ácida, fina, alfinetes aquosos.
Quem olhasse de cima dos prédios da Rua dos Trabalhadores, no centro da cidade, veria um bando de guarda-chuvas abertos como morcegos-raposa.
Em frente à portaria da empresa de seguros Segurança Cardoso S/A, um homem idoso, franzino, jazia deitado em posição fetal. Seus lábios fechavam e explodiam sutis inícios de alguma consoante. Assim que o vigia abriu a porta, deparou com o obstáculo de pele e osso.
O vigia olhou para um lado. Para o outro. Cutucou o velho com o pé:
- Ô! Tá na hora de acordar. O senhor está atrapalhando a entrada - O velho movimentou um espasmo e voltou a sua imobilidade. Apenas a boca mexia, como se fosse sair uma bolha seca. – O quê? Fala mais alto! - disse o vigia.
As pessoas transitavam no passeio, indiferentes, como uma enxurrada. Do grupo de pedestres saiu um homem e perguntou ao vigia:
- Ele está vivo?
- Parece que sim.
- Já chamou a ambulância municipal?
- Já. Mas houve uma diminuição da frota e eles estão priorizando casos mais graves. Além disso, a chuva deixa o trânsito congestionado.
O homem agachou e tomou a pulsação no pescoço do idoso.
- Sou médico. Tomara que cheguem rápido – Depois, levantou-se e foi embora.
Uma fila começou a se formar em frente ao indigente.
- Vocês vão ter que pular – disse o vigia.
As pessoas pulavam o obstáculo reclamando das condições da cidade: ruas esburacadas, inundações, sinais estragados... “E ninguém faz nada”, resmungou um engravatado.
- A culpa é do governo. Esses corruptos – Gritou nervosamente uma mulher quase tropeçando no velho caído. Depois emendou – Vocês não vão tirar esse senhor dali?
Dois estudantes que passavam pararam, tiraram uma foto com o celular e postaram na rede social:
“Que abisurdo”
Só não se sabia ao certo se o absurdo se referia à falta de ajuda ao velho ou ao fato de ele estar lá deitado atrapalhando a entrada.
16 pessoas curtiram a foto e 5 comentaram:
“Coitado”
“Ah não! Tanta coisa boa e vc coloca um post triste demanhã”
“Absurdo é com i embecil kkkkkkkkk”
“Tem abrigo público na cidade e estes bebuns preferem durmi nas marquises. Putz”
“O que é isso? Celular de pobre o seu heim. Resolução ruinzinha huashsua...”
Foram reclamar com o chefe de divisão. O corpo estava criando um tumulto. Ele foi verificar. Colocou as mãos na cintura. Avaliou. Avaliou. Avaliou e depois disse:
- Deve ser epilepsia.
Buzinas, freadas, vozes, propagandas, vendedores ambulantes num “Mega Sena acumulada, olha a Mega!” repetitivo. Enfim um barulho de sirene começou a ficar audível.
Uma senhora com uma sacola de frutas parou e abaixou próximo à cabeça do velho. Virou o rosto dele de lado e enfiou o dedo indicador na boca.
- É para ele não engolir a língua e sufocar.
A dentada foi cravada. Por pouco não decepava a falange. A mulher gritou um filho-de-uma-puta retumbante. O sangue começou a jorrar. Um senhor tirou o lenço do bolso e ofereceu gentilmente a ela.
- Aperte bastante. Para estancar.
Uma das funcionárias da empresa levou a mulher com o dedo ferido ao banheiro.
- Lave muito com sabão. Não se sabe qual doença ele tem.
A hemorragia não parava. A dona era diabética. A pobre coitada. Tão solícita e solidária. Vai fazer uma caridade e ganha uma mordida do cachorro desgraçado.
Como o acidente fora às portas da Segurança Cardoso S/A, providenciaram rapidamente um automóvel para levá-la ao Pronto Socorro.
- Chamem primeiro a imprensa! – ordenou o diretor. – Precisamos mostrar que nossa companhia tem responsabilidade social.
O veículo da reportagem chegou. A mulher foi entrevistada. Explicou que queria apenas ajudar e agora corria o risco de ficar sem o dedo indicador. O diretor fez questão de destacar a prontidão com que atenderam a cidadã, inclusive fazendo um curativo improvisado por uma estudante de Técnica de Enfermagem que trabalhava na recepção. Os repórteres comentaram como seria vergonhoso para a cidade ser a sede da copa do mundo, com um mundo de mendigos espalhados por todos os cantos, depois saíram em disparada para cobrir a chegada da seleção campeã ao aeroporto.
A ambulância chegou logo em seguida. Os paramédicos examinaram o velho. Depois o levaram para a Medicina Legal.
- Ele falou alguma coisa ou foi só o último suspiro? – perguntou o motorista da ambulância ao companheiro.
O outro, fitando o pára-brisa, respondeu:
- Não sei se foi Paz ou Pão.