PARAISO INFERNAL
PARAISO INFERNAL
BETO MACHADO
---Quanto me foi traiçoeira a vida lá na Terra!!!
Assim berrava o recém desencarnado, ao entrar no Paraíso, sendo recebido por um velho amigo, que havia “cantado pra subir” havia alguns anos.
---Caramba, Nadinho, você não mudou nada!!!!
---Olha, Sávio, aqui não é lugar para lamentação nem para bajulação. Por que você reclama tanto do que viveu?
---Pô, se eu soubesse que o negócio aqui fosse tão bom, não teria ficado tanto tempo naquele planeta de merda.
---Calma. Calma. Ce ta chegando agora...
---Mas, pelo que vejo, isso aqui é muito bom... Isso aqui é bom demais.
---Olha, tem umas normas aqui que muitos não se adaptam. Por isso a porta de saída tá sempre com fluxo intenso.
---Como é que é isso?... Tem expulsão aqui?
---Expulsão não. Desistência.
---Pô, quem é que vai desistir de morar no Paraíso?
---Quem não se adapta.
---Porra, Nadinho, tu só falava palavrão, xingava todo mundo... Quê que houve contigo?... Tá estudando aqui?
---Bem... Se você prefere eu posso te mandar pra puta que pariu, mas pro inferno só você pode se mandar.
---Ah!!! Esse é o Nadinho que eu conheço.
---Calma. Se empolga não... Amanhã cê vai receber um pacote com memória, inteligência e emoção. A capacidade de armazenamento da tal memória é de um trilhão de tera bytes.
---Que porra é essa, cara? Terá bytes é coisa de gente fina.
---Pois é. Amanhã você vai ter outra opinião...
--- Cadê o resto do pessoal desse lugar?
---Tá todo mundo aí, te vendo... Eu fui escalado pra te receber.
---E o que foi feito do S. Pedro, o porteiro do Paraíso?
---Isso é assunto pra gente viva... Daqui a pouco você será desligado, e quando for religado já estará pronto pra ver e dialogar com todos.
---Mas pêra aí... Agora não... Agor... Ago...A...
Sávio entrou em “stand by” temporário, sem imaginar como seria o dia seguinte.
Agora, recém acordado, de posse do seu “kit” zerinho, zerinho, procura tomar pé da situação.
Mal abre os olhos, dá de cara com a multidão. Muitos olhares perplexos, alguns alegres, outros indiferentes... Não reconheceu ninguém. A ausência de Nadinho lhe produziu um certo pavor momentâneo. Acomodou-se melhor, recostando-se a uma nuvem mais densa, pois a “noite” anterior não lhe proporcionara um bom dormir. Talvez tenha sido o incômodo da inserção do chip.
Como ninguém puxou conversa, pensou em se aventurar num possível diálogo. Talvez alguma daquelas “pobres almas” quisesse interagir com ele. Mas logo abortou a idéia, visto que a ausência de Nadinho o colocaria em posição de fragilidade diante daquele povaréu. E continuou pensando: --- Puta que pariu! Cadê aquele galego desbocado que virou orador de Aula Magna para calouro no Paraíso?... Esse puto deve ta querendo me testar, escondido numa dessas nuvens que lá na Terra a gente diz que “nem chove, nem sai de cima”. Mas se ele deixar eu me foder sozinho vou botar os podres dele pra fora, em alto e bom som.
Súbto, Nadinho surge a sua frente.
---Caro calouro Sávio...
---Calouro?...
---Sim... Mas não esgote seu estoque de energias negativas. Guarde-as pra depois da tua desistência.
---Que desistência, Portuga? Ta torcendo contra?
---Aqui não se torce. Aqui se constata.
---Mas eu não fiz nada. Não falei nada. Só tava pensando em você.
---Meus podres não produzem mais nenhum efeito aqui. Os teus sim. Cuide de se livrar deles, rápido.
---Hi!!! Aqui também tem seção de adivinhação, leitura de mão e aquelas enganações tipo “Mãe Diná?
---Não.
---Se eu não falei uma só palavra como é que tu me veio com esse papo de calouro, de podres e de energias negativas? Abre o jogo, amigo.
---A abertura aqui é total.
---Então como é que tu soube do meu pensamento?
---Estamos todos integrados.
---Mas eu não sei o que você ta pensando agora.
---Essa propriedade você só adquire se vencer a desistência.
---Porra, cara, eu vim do Brasil. Brasileiro não desiste nunca.
---Pois bem. A maioria dos teus conterrâneos recebida por mim deve estar satisfeita lá no inferno. Nenhum deles desistiu de ser corrupto, de ser ladrão, de ser assassino contumaz, de ser estuprador, a despeito do conhecimento das sanções relativas a esses crimes. Não desistiram de se portar exatamente do mesmo modo como se portavam antes.
---Pô, maluco, ontem você me disse que o tal kit que me deram tem uma porrada de inteligência, só que eu não to entendendo mais nada. Esse troço ta me embaralhando a cuca. E, pior, Já to ficando de saco cheio... Outra coisa: fala só pra mim aqui... baixinho... Tu era todo estouradinho, como é que ficou assim zem ?
---Esqueceu que eu não sou brasileiro
---Tá cuspindo no prato que comeu, velho?
---Não. Só que o apego a coisas negativas não é característica dos meus conterrâneos. Eu estou tentando clarear o teu caminho.
---Que caminho?
---O caminho da desistência.
---Puta que pariu. Tu me tira do sério, cara. Tu só fala nessa porra de desistência. Por que tu não fala em permanência?
---Oh Glória!!! Até que em fim ouvi algo positivo saído da tua boca.
---Pô, maluco, tu ta a fim de me zoar... Eu falo um porrilhão de palavrões e tu diz que é positivo. Qual é a tua?
---Calma que a tua afoitice não te ajudará em nada.
---Eu vou tentar me acalmar, mas me diz: aqueles caras que tu “passou o rato” lá na Curva do Matoso, na festa de Santo Antônio, já te encontraram aqui?
---Já. E estão quase todos aí te olhando.
---Por que eles ficam com essa cara de professores das oficinas da Pestalozzi dos anos setenta?
---Não se preocupe com isso... Deve ser o teu processo de regressão se iniciando.
---Mas eu continuo intrigado com aquele lance de adivinhação.
---Já te disse que estamos todos integrados.
---Cacetada!!! Acho que me deram um “toco”. Meu kit de inteligência veio vazio.
---Tá começando a adivinhar.
---Que mudança radical!!! Se contarem lá na Terra ninguém vai acreditar. Nadinho, o temido homem da bengala e do trabuco, agora, depois de morto é o conselheiro zem do Paraíso.
---A tua evolução já se faz perceptível.
---Cê quer dizer que eu cheguei aqui burro de tudo?
---Burro não. Vazio de tudo. Mas o teu HD já começa a armazenar.
--- Ora veja só. O portuga chega ao Brasil duro que nem um coco, analfabeto de língua e de ofício, incapaz de fazer um O com um copo, tanto que morreu com quase oitenta anos e com o mesmo sotaque que trouxe d’além mar e arrumou dinheiro a rodo, Deus sabe lá como, comprou e invadiu terras, construiu casas, matou gente de montão, espancou incautos nas margens de campos de pelada, com sua bengala. Hoje é a esse que devo o aval para eu permanecer no Paraíso. Só que eu não vou desistir.
---Cada palavra ou ação positiva que você emprega seus créditos se ampliam... Mais uma dica: rancores e ressentimentos não cabem aqui.
---Tá tranqüilo... E essa gente aí, não fala nada?
Como se Sávio tivesse acionado a tecla play de um “micro system” começou um falatório, um burburinho irritante, aparentemente incontrolável.
---Po, maluco, tu não consegue desligar isso não?
---Eles ouviram os seus palavrões e as minhas ponderações. Agora ouçamo-los.
---É... Nadinho falando linguagem de almofadinha na porta de faculdade de direito. Era só o que faltava. E eu que não acreditava em purgatório, pensava que fosse “sete um” dos padres para enganar os bobos... Escuta aqui, ó aprendiz de Gandi, eu to a fim de dar umas voltinhas por aí, enquanto esses tagarelas afiam suas línguas. É possível?
---Claro que é. Só que o som ambiente também é integrado.
---E daí?
---Daí que onde você for vai ouvir o que ouve aqui.
---Isso é um teste ou uma tortura?
---Nem um, nem outra.
---Mas esse murmúrio fadiga meus ouvidos. Dá um jeito de parar essa feirinha da Pavuna.
---Só amanhã.
---Pô, vão me apagar de novo?
---Não. Só se você quiser. Mas o despertar é lá no fim do caminho da desistência.
---Cruz credo!!! Sapo seco, mangalô, três vezes!!! É ruim de eu desistir, heim.