Professor de Poesia

Professor de Poesia





Era uma casa dessas que ao longo do tempo sofreu várias modificações. Está num bairro que já foi considerado - na melhor das hipóteses - de classe média. Talvez em virtude de modelos comparativos os padrões da cidade mudaram muito nos últimos 50 anos. Hoje a casa, ainda que no mesmo lugar, respira com sua soberania de no máximo 6 metros de frente em logradouro classificado como “classe média alta”. É como se uma mão gigantesca movesse as peças de um enorme tabuleiro, o tabuleiro continua fincado em idêntico local, mas as peças, num repente que durou meio século, ganharam novo status.

Seis metros de frente, se tanto, geminada, espremida entre tantas outras, ao lado há uma academia de ginástica, depois vê-se uma lanchonete, em seguida uma lavanderia, mais à frente um consultório médico.

Na parte de cima uma discreta placa de um grafite esmaecido anuncia a sigla C.A.C. em verde escuro, seguida dos dizeres: Centro de Assistência em Comunicação.

Conferi o endereço com o recorte de jornal que trouxera na carteira: “Professor de Poesia – aulas particulares ou em grupos”.

“É aqui mesmo”, conclui, tocando a campainha.

Demorou um devaneio para uma senhora loira beirando os 60 anos surgir na porta e indagar minhas pretensões. Ao lhe mostrar o anúncio ela fez um esgar de contrafeita anuência por trás de suas lentes bifocais e me encaminhou por um corredor estreito que desemboca no que aparenta ser uma recepção.

Quando dei por mim, às vezes isso acontece, estava acomodado num sofá, com revistas lá e acolá, e ela em sua mesa de trabalho, revezando-se no telefone, no computador ou em anotações num bloco branco, sem pauta.

Ofereceu-me café e disse que o professor Jéferson estava no andar de cima, com um grupo, e como eu não havia marcado horário teria de esperar cerca de 15 minutos, ou um pouco mais. Não me deu nenhuma ficha para preencher. Tampouco se dispôs a me oferecer a oportunidade de marcarmos um horário. Insistiu no café reiterando que o professor Jéferson, dentro de instantes, logo apareceria para esclarecimentos.

Divaguei com os olhos sobre o ambiente constatando o quanto aquilo se parecia mais com uma sala de estar doméstica do que com um espaço de recepção comercial.

Quanto aos esclarecimentos do professor, faltou-me ânimo para expressar que alguém como eu, em dado momento, busca qualquer coisa exceto a verdade.

Apesar do sofá, duas poltronas e uma mesa de centro, espalham-se pelas paredes, como trigo no campo, prateleiras, livros e objetos.

Ela trabalha compenetrada, o telefone não chega ser a tônica de sua rotina, mas houve um momento em que encerrou uma ligação assim dizendo: “o problema das mentes fechadas é que elas geralmente vem acompanhadas de uma boca aberta”.

Penso na possibilidade de sair para fumar um cigarro. Receio que, se esticar as pernas, denote inquietação, o que não seria autêntico. Sinto-me calmo nesse lugar, não sei até quando, a nicotina é uma tremenda desestabilizadora de nuances.

Ela age como um espadachim ultra eficiente desprovido de qualquer espalhafato, gestual ou sonoro.

Lá em cima uma porta se abre e passos parecem vir para cá, para onde estou, trazendo consigo, feito quem arrasta um lençol, palavras estas, em tom de exclamação: “Que conversa é essa de Guerra contra as Drogas? Ninguém ganha e nunca termina. Não é uma guerra”.

A porta fechou e as palavras se foram, os passos parecem cada vez mais próximos e logo um homem de cabelos parcialmente grisalhos, camiseta pólo, calça jeans, aproxima-se já com a mão estendida:

- Olá, sou o Jéferson, me desculpe, estamos terminando um grupo de discussão, a Miriam me disse que você veio por causa do anúncio, certo?

Miriam enfim tem um nome, ruminei estendendo a mão. Ela age feito secretária embora não se pareça com uma.

Como eu estivesse, segundos antes, observando as prateleiras e brincando com um cigarro apagado, ele notou e, a maneira de um relâmpago gentil, verbalizou: “Ah, vai fumar? Vamos lá fora, eu faço companhia. Obrigado, larguei há alguns anos”.

Na calçada, numa tarde nublada nem fria nem quente, ficou subentendido que eu não tinha pressa e que deveria esperá-lo para conversarmos a respeito do anúncio. Ele ainda me fez o convite: que eu terminasse o cigarro com calma e me juntasse a eles no grupo de discussão, como ouvinte. Depois conversaríamos.

- Discutem sobre o que?

- Várias coisas.

Fiquei lá fora por alguns minutos me perguntando do real motivo de ali me encontrar, e, se fosse esperar por uma resposta, céus e terra passariam e eu ficaria na mesma.

Miriam, que mais me parece uma esposa prestando assistência, encaminhou-me à sala onde ocorria o grupo de discussão.

Sentei e calei. Jéferson me lançou um olhar camarada. Daí desandou a falar para uma platéia de dez ouvintes: oito mulheres e dois homens.

- Arno Peters trouxe a questão para o nicho dos cartógrafos e, por que não dizer, para a sociedade como um todo. Em 1973 ele fez uma projeção intitulada “Mapa Para Um Mundo Mais Solidário”. Vamos dar uma última revisada para o nosso próximo encontro. Clarice, sua vez.

Clarice, com uma saia aberta de um modo que eu diria provocativo, disse de um jeito meio mecânico:

- A projeção Mercator serviu às pretensões imperialistas européias. O cartógrafo alemão Mercator desenhou o mapa em 1569 como ferramenta de navegação para navegantes europeus. É o mapa como a gente conhece, que fica dependurado nas escolas...

- Mas ele teve uma função, na época – contrapôs uma moça baixa, cujo nome me escapa - o aumento nas áreas dos pólos possibilitou a criação de linhas constantes de direção geográfica.

O professor Jéferson fez um aceno com a mão e volveu o olhar para uma morena chamada Marlene, que mexia no celular e disse:

- Colando de novo, lindona? Assim nossa proposta vai por água abaixo. Lembrando a todos mais uma vez, o objetivo dos nossos encontros é estimular o raciocínio indutivo e a criatividade na conversa com bagagem de informação. Não para competir ou ostentar saber, mas para fermentar raciocínios na base da troca de idéias. Senão fica todo mundo teclando num Ipad e repetindo a mesma coisa. Vocês estão me pagando por isso... Márcia!

Márcia tinha olhos verdes. Ela sacou uma folha de papel, dizendo que ia precisar checar uns detalhes, pois fizera uma pesquisa cruzando várias informações e perguntou se alguém se opunha.

Ninguém.

Então discorreu para a turma:

- O mapa do Mercator distorce o tamanho relativo das nações e continentes. A Groenlândia aparece quase do tamanho da África, quando na verdade é 14 vezes menor. A Europa é desenhada bem maior do que a América do Sul, quando, com 17,8 milhões de km, a América do Sul tem quase o dobro do tamanho da Europa. O Alaska aparece 3 vezes maior do que o México, sendo o México maior por 0,25 milhões...

- Conclusão? – fez o professor Jéferson movendo o queixo para um cidadão chamado Paulo, sentado próximo a mim. Paulo foi lacônico:

- Na visão do Peters, o mapa mundi deveria figurar de cabeça para baixo...

Jéferson sorriu, agradeceu, mandou todos embora com um jeito brincalhão, avisando para conversarem com a Mirian sobre a alteração de horário da próxima terça.

- Enfim sós... – fez ele ainda no modo jocoso, me agradecendo a paciência e que precisava me explicar o anúncio, mas, advertiu, queria me contar uma coisa.

- Quer fumar? Pode fumar aqui, nesta sala mando eu e a Mirian não se intromete. Não quer fumar? Ok, já ouviu falar de um cara chamado Chomsky?

- É um poeta?

- Hã, não...bem, para encurtar, Noam Chomsky escreveu, dentre inumeráveis coisas que realmente valeram a pena serem escritas, “As Estratégias de Manipulação Midiática”, e uma delas é tratar o cidadão “como um menino de baixa idade ou um deficiente mental”. Motivo? Eis o motivo: “Se você se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos ou menos, então, em razão da sugestão, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de um sentido crítico, exatamente com o proceder de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade”. Você está se perguntando onde quero chegar... Simples – as pessoas não interagem mais. Não como seres adultos, ponderados, argüidores, munidos de espírito esportivo para realizar o “bom debate”. Não! Elas querem respostas prontas por presumir que comunicação seja simplesmente dizer que 3 vezes 4 é igual a 12. Fim de conversa. E quando contrariadas...

Ele estava falando tudo isso de pé. Ao terminar sentou-se e eu fiquei com a sensação de ter comprado um abacate e recebido o troco errado, para menos.

Disse-lhe, exatamente com essas palavras:

- Senhor Jéferson, com todo o respeito, tudo isso não me parece novidade.

Ele sorriu me pedindo para excluir o “senhor” das próximas sentenças e que, sim, apesar de não constituir novidade, aquelas 10 pessoas estavam remunerando-o exatamente para esse fim: aprenderem a efetuar um diálogo sem que este seja uma linha reta. E árida.

- Assim – fez ele – existem 10 pessoas que estão sentindo falta disso, concorda?

- De cabo a rabo... – respondi, com vontade de rir.

Enfim, chegamos no anúncio. Ele me pediu para ver. Tirei da carteira e lhe mostrei. Ele sorriu com uma satisfação infantil.

Então indagou:

- Por que veio aqui? Oh, desculpe, deixe-me reformular: por que você quer essas aulas?

Respondi-lhe depois de muito pensar, supondo por ventura que a quantidade de pensamentos fosse me fornecer respostas, que como todo ser humano, vivo rodeado de certo contingente de pessoas e que chegou a hora de mostrar a elas que não estão lidando com uma marionete. Quero que vejam que estou pronto. Quero que entendam que avanços, experimentos e progressos não me interessam mais. Já não tenho assim tanto tempo. Está na hora de realizar algo.

Se o professor ainda fosse um fumante, essa seria a hora de acender um cigarro e ponderar na resposta. Mas não, ele apenas ponderou antes de questionar:

- E você acha que esse “algo” seria uma poesia?

- Precisamente – respondi, taxativo.

Jéferson levantou e deu uma volta pela sala.

- Eu... – começou ele – como dizer, nem sei como lhe dizer. Esta semana completo 63 anos de idade e minha filha, minha filha fez 18 semana passada e ela me disse: pai, falta uma coisa na sua vida. Eu perguntei: o que? Ela falou: vou te fazer uma surpresa e então você saberá o que falta. E, ora, ela mandou fazer o anúncio...

Ficamos um longo tempo sentados, um de frente para outro, sem dizer nada. Quebrei o silêncio por acaso, como quem chuta um pedregulho na calçada.

- Quer dizer que o senhor não ensina... O anúncio era uma brincadeira?

Ele balançou a cabeça, no modo afirmativo. Depois acrescentou:

- Essa matéria não pode ser ensinada.

Decorrido um breve hiato levantamos juntos, parecia que havíamos ensaiado, desconheço o que o meu semblante aparentava, mas talvez, por este motivo, ao sairmos da sala ele principiou:

- Uma brincadeira... Ela não pensou que isso pudesse afetar outras pessoas. Mais uma vez lhe peço desculpas pelo inconveniente. Vamos tomar um lanche aqui do lado? Eles tem coisas deliciosas lá. É por minha conta.

Aceitei sem pensar, parecia uma boa idéia.

Lá fora, por mera curiosidade, quis saber:

- Outras pessoas apareceram?

- Uma mulher ligou ontem à tarde... – disse ele.

- E então vocês explicaram? – emendei.

- Foi...

- Bem... – suspirei – não sei o que se passou comigo. Vi o anúncio e vim para cá, só isso.

- Acontece – disse ele.




(Imagem: Vicente Romero Redondo)










 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 25/11/2013
Reeditado em 10/05/2021
Código do texto: T4585848
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