Fragmento 02
Quinta-feira. Maio. 2010. Manhã. Um frio com luzes. Bravatas matutinas. Centro de São Paulo. Catedral da Sé. Marco Zero de São Paulo. Mendigos espalhados pelos cantos. Meninos de rua descalços. No centro da praça, um homem deitado debaixo da estátua de um santo. Acima, um céu cinzento. Nuvens escondem o dia. Na escadaria da catedral, uma mulher se senta, usa vestido vermelho, maquiagem vulgar, bolsa pequena e sapatos de salto na mão; tira um cigarro, acende e observa o quadro que a cidade lhe dá. Pombos voam. A barulheira dos carros é inaudita. Há um mundo interno e outro externo. Trabalhadores aguardam mais um ônibus para ir à busca do pão no ponto na rua paralela. Rostos pálidos e sufocados pelo sono. Um rapaz se aproxima e passa perto do ombro da mulher de vestido vermelho. Atravessa sem vê-la. Degraus. Sapato. Roupa de linho. Passos. Uma subida à procura de socorro. Horizonte. Uma grande porta a transpor. Velas. Catedral vazia. Bancos. Enorme fileira. Genuflexórios. Cristo crucificado. Silêncio. Espaço sacro. Imagens de santos. Reflexões. Pedidos. Confusão mental. O rapaz contempla o interior da catedral, olha a magnífica cúpula. Um mundo de paz e silêncio. Pensamentos. Pedir uma cura para algo que não tem cura. Alma corroída. Angústia. Vontade de chorar. Palavras desconexas. Súplicas. Pedidos. Gritos para Deus. Onde está Deus neste momento? Em todos os lugares? Nos céus? Na igreja? Ao lado da mulher que fuma na escadaria? Lágrimas. Sinal da cruz. Olhar para o alto. A cruz na parede. A cruz estática. Soluços que não solucionam. Silêncio. Frio. Dor. Desespero. Desolação. Os olhos incham com mais lágrimas. As lágrimas que salgam os lábios cingem pela face. As lágrimas ganham o corpo. O corpo pede abrigo. A alma pede conforto. A igreja vira um espaço de fuga. Uma fuga da pesada realidade. Acordar e não ter vontade de se locomover, no entanto, ter de empurrar uma carruagem, eis uma condenação. Há um estado pesado. Estado de cerceamento. Estado estático. Há também uma estrada a seguir. Há uma estrada para empurrar a carruagem. Um horizonte à frente. Horizonte. Como enfrentar este horizonte? Olhar. Olho. Ira na miragem da vertigem. Uma tontura. Ele se encurva. Abaixa-se. Pousa os joelhos nos genuflexórios. Apoia os cotovelos. Cruza as mãos. Fecha os olhos. Sente algo rasgar a garganta. Sente algo diferente no coração. O coração apertado como uma pomba esmagada pelas mãos de um homem cruel se esfacela, o coração pede uma luz. Que luz viria a conduzir o coração de um homem sem fé? O tempo como consoada passa. O consolo surge do desconsolo. Um falso conforto aparece. Uma falsa sensação de paz para um falso cristão. Reza ainda mais. Pede ainda mais pela salvação. Nas suas súplicas pensamentos se misturam. “Meu pai, olhai por mim... Por que tenho pecado tanto? Não sei o que é pecado. Me ajuda, não aguento mais... Eu não sei como pedir. Perdoe-me. Ave Maria cheia de graça...”. Dentro da igreja, o homem continua a pedir. Fora, a mulher acende mais um cigarro; ela sabe que não é nenhuma Maria-cheia-de-graça, mas mesmo assim tem a vontade de entrar na igreja toda manhã. Após, quase seis cigarros, observa a repetição do dia anterior, acende mais um. Um pedinte senta ao lado dela. O rosto do homem é como a caatinga. Ele quer um trago, ela sabe e não espera o pedido, entrega um cigarro aceso. Ascensão. Dentro da igreja, uma senhora velhinha surge atrás da sacristia; acende algumas velas. O rapaz limpa as lágrimas, se ergue, arruma os genuflexórios. Em pé, arruma o linho, tira a carteira, contas algumas notas e moedas. O chão da catedral é limpo. A cúpula divina. Ele caminha e deixa algumas moedas no recolhimento do dízimo. Sai do espaço sacro. Passos. Seus olhos ganham um novo horizonte. Pessoas descem sentido metrô. Mendigos. Transeuntes apressados. A estátua. A banca de jornal. Os homens com placas no corpo propagando. Ponto de ônibus. A mulher de vestido vermelho se levanta, se organiza, caminha para porta da catedral. Agora é a vez dela pedir perdão. Passa ao lado do rapaz que sai com um nenúfar de lágrimas. Ela sente uma inquietação no moço. Entra na catedral, observa a cúpula e faz o sinal da cruz. Olha para trás e contempla a metrópole que lhe consome. A realidade concreta da polis pesa. Lá fora, no centro da Sé: São Paulo. A estátua carrega uma mensagem. No pergaminho, em suas mãos, está escrito: "Senhor o que queres que eu faça?". A mulher de vermelho entra na catedral. Faz o sinal da cruz. Anda. Passos lentos, no peso. Organiza os genuflexórios. Apluma o joelhos. Faz o sinal da cruz. Pai-filho-espírito-santo! Pede pelo homem que acabara de sair chorando. Lá fora, ele caminha para o metrô. Agora, se sente mais leve na insustentabilidade da vida...