Legado de luas, ato I

A voz em sua cabeça cantava alguma coisa irreconhecível, sobre as formigas que não existiam e que laceravam a carne com seu ácido pungente e familiar. O vampiro esfregou as mãos nuas no rosto, para se livrar das formigas que não estavam lá, e sorriu em silêncio solene ao avistar a ponte que a visão lhe deu.

“Uma cidade das mais malditas. Das mais cruéis. Um lar.”

Algo lhe lambeu o lóbulo do ouvido, ele corou por instinto e sentiu a carne apodrecida reagir nas calças. Uma amante não-nascida, algo embriagado que soluçava entre um devaneio e outro.

“Suma daqui, não quero você, quero só esse vento, esse delicioso vento cor de sândalo que adocica os olhos dos caídos enquanto eles mergulham para dentro. Para o fim.”

A amante que morreu no ego se fez fumaça púrpura na visão periférica do morto. Aquilo que o acompanhava cantou um verso fúnebre sobre mudança, sobre seguir em frente, sobre ser o que nunca se tinha sido verdadeiramente. Uma canção de luas e pernoites e mágoas e dores e verdades e vidas.

A vida de alguém que por muito tempo tentou ficar sozinho, e que não mais suportava isso.

Ele cruzou uma ponte, invisível aos olhos dos cegos para o sangue, sentindo o cheiro de vitae estrangeiro e de morte antiga. Uma magia desconhecida se fazia presente, ainda que perene. Ele abriu o olho da alma ao tocar um poste cinzento, suspirou um dos nomes de Deus e exigiu conferência. Ele foi atendido.

Caindo no céu do nada, transbordando para fora de si, recriando-se na insustentável leveza do puro caos da doença e da verdade, ele cheirou a treva que permeava Damian, tão grossa e viscosa que violava a garganta, tangível, etérea, deliciosa. Algo gritava sem parar no horizonte inalcançável do ser. Uma criança? Um pedacinho da lua dos mortos? Um agouro da salvação a muito desejado?

Algo havia morrido naquela ponte. Algo que um dia foi tudo, algo que o faz o céu chorar a simples lembrança da catástrofe. Vitae. Delírio. Uma criança que estava sozinha.

A realidade o atinge como uma martelada na têmpora. Ele volta a ter corpo e pedaços de história e se curva no chão, agarrado ao poste, seu foco de tempo imediato. Suas unhas entram no concreto, se partem, sangram. Um gosto azedo lhe sobe pela garganta, um pedacinho dele que não aguentava mais existir.

Carros passam apressados, alheios ao tormento furtivo do vampiro, ele, protegido pelo véu de sangue, derrama uma única lágrima antes de sonhar com lobos e homens e anjos e mortes.

Algo uivou. Uma lembrança de inverno e de um país que morria. Cada pelo do corpo do malkaviano se eriçou quando o instinto vermelho rompeu o espelho e cuspiu em sua face gritando “PERIGO”. Ele deixou de ter lágrima para ter força, e, canalizando o poder, correu em direção ao desconhecido, em direção a seus anjos e seus demônios, em direção a seu novo ego, ao seu novo eu.

E na sua cabeça, alguém que não estava lá cantava sobre pequenas formigas que lhe escalavam os joelhos, mordendo, mordendo, passeando... E entrando mais fundo.

Devus
Enviado por Devus em 18/11/2013
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