ESCONDIDO NAS MONTANHAS

        Eram meados de 1945, a segunda Guerra Mundial estava declinando, mas um fato no interior de Botuverá nos remete àqueles tempos. Madrugada alta, meu tio Santi abriu a porta dos fundos para sair, pra tomar um ar, com cuidado, pois tudo era negrume. Ouviu um farfalhar de folhas adiante.
        - Aninha, és tu que estás aí fora? – perguntou preocupado.
      - Estou aqui!... do teu lado! - minha mãe (com 15 anos na ocasião) respondeu deitada na cama onde dormia bem ao lado da porta. Sobressaltado, meu tio de supetão bateu a porta (oras, tinha um vulto lá fora!...). Dia seguinte, todos foram pra roça colher milho e batatas-doces, e contaram o caso pra vizinhança.
        Ao cair da noite, no terreno do Arcidi Colzani o vulto se escondeu, montou campana. Aproveitou a hora do rosário, em que todos os familiares estavam ao redor de um crucifixo orando ajoelhados e de vela acesa, o forasteiro aproximou-se da janela e roubou o que pode: linguiças, pão quente e roscas de polvilho. Zarpou com aquilo mata adentro. Terminadas as orações a família ficou furiosa, quando deu com a falta do jantar preparado com tanto esforço.
        - Ma que maledetto!!!... Maldito!!! Quem é que é capaz de numa hora dessas vir aqui roubar a gente? – e saíram os homens da casa vasculhando o mato da redondeza com uma lamparina a querosene na mão. Nada feito!... nem sinal.
        No domingo depois da missa, quando todos se reuniram no pátio da igreja pra confabular sobre os assuntos da semana, como era de costume, o assunto foi o tal estranho. Mas, que coisa séria!
        Uma semana depois, seis horas da manhã de inverno fria, Luigi Caresia, encolhido no capote, foi tratar as ovelhas. Eram ao todo seis, uma cria nascida há poucos meses. Foi enchendo a gamela de trato, e se deu conta que faltava a última, apelidada Polete. Luigi saiu pelos fundos do rancho e avistou um homem de baixa estatura com a cria debaixo do braço correndo pra longe.
        - La mia Polete!... me devolve a minha ovelhinha! - gritou a plenos pulmões. – e correu, correu com todas as forças pra alcançar o safado que lhe roubara. O estranho ria, um riso tolo, e fazia cara feia pra assustar, enquanto se embrenhava na mata.
O Luigi, homem forte, acostumado à lida da roça quase o alcançou e lhe arremessou um galho de árvore. Não pegou. O estranho desatinou numa corrida desvairada. Pulou uma moita e afundou os pés num brejo adiante. A ovelhinha esperneou tanto e urrou tanto que se soltou das garras do forasteiro. Fugiu, assustada. O Luigi ficou com muita raiva, deu uns berros e foi atrás da pobre cria. Que transtorno! Só depois de horas conseguiu pegar a bichinha e voltar pra casa.
        Afonsinho foi pro rio pegar cascudos pro almoço da família. Entrou no rio límpido de Botuverá, mediu as margens com olhar apurado. Foi com as mãos tateando nas tocas dos peixes, que ficam assim na beira d’água. Pegou um cascudo, depois outro e mais uns. Aí avistou um objeto vindo correnteza abaixo, bem perto dele, e apressou-se em pegá-lo. O boné lhe caiu muito bem, e retornou ao lar.
        - Onde foi que você foi achar esse boné? – perguntou a mãe, tia Mariana, muito intrigada.
            - No rio!... veio na correnteza! – respondeu, contente com o achado.
        - Como isso?! Um boné do 23 º Batalhão de Infantaria!!!... muito estranho! - Tia Mariana foi com o filho no armazém e encontrou com o irmão Luigi. Este contou o quase roubo da ovelhinha. Olhando o boné do sobrinho chegou a conclusão que só podia ser um desertor, pois usava roupas e botas de soldado. Apelidaram-no de l’umini (homem pequeno no dialeto italiano). O l’umini incomodou um bom tempo por aquela região.
        Uns dois meses depois, o Gino Venzon foi pra densa mata caçar como era de costume. Subiu pro topo da montanha (atrás da casa) lá no Lajeado Alto. Postou-se, escondido, numa moita onde avistara algumas aves. Olhou, mirou e pensou melhor... – vou procurar umas aves maiores. – Seguiu pra frente em meio a outras árvores: - Um bugio!... está bom!... carne boa, dá pra família. – É... de longe achou que seria: um Alouatta fusca, vulgarmente chamado de bugio e que as pessoas da localidade gostavam de saborear. Foi chegando mais perto, assim... bem à surdina. Apontou a arma... e...
         - Mata!!!... me mata... – ouviu uma voz grave... (levou um susto).
        - Quem está aí? – ousou perguntar, pois acreditava piamente que não passava de um grande bugio não topo de uma árvore. Tremia todo com a arma de caça de cano curto apontando pro estranho invasor – Está fazendo o quê nas minhas terras?!
        - Me mata!... me mata!!! – provocava com voz debochada o maluco - Vamos! Me mata!... – riu um riso bobo, provocativo, e sacudiu com força os galhos lá de cima da árvore, irritante e insano.
O Venzon bateu em retirada, de costas, com as pernas bambas e o coração aos pulos. Assim que saiu do alcance da visão do estranho, correu pra casa, esbaforido. Era o tal l’umini como pode constatar depois de contar o caso pra vizinhança... era o mesmo!... “aquele” que andava invadindo as casas da região e furtando comida.
        Umas semanas depois, outro incidente. Os Comandolli, pai mãe e filhos, estavam todos no paiol aos fundos da casa desfiando a palha do milho pra encher um novo colchão. Faziam isso de noite, pois de dia estavam todos na lida da roça. Pelas nove horas da noite suspenderam a tarefa e se recolheram. Ao adentrar a cozinha perceberam a mesa desarrumada – "Mas, como isso?!" – indagou a Sra. Maria – "O pão quentinho estava aqui!..." – inconformada, mandou todos lá pra fora investigar o que estava acontecendo – "Foi o cão da vizinha" – disse um – "Não, pode ser!" – "foi algum porco do mato!" – "Não!... tem cara de gente, gente andou vindo e nos roubou!"
        Seu Comandolli foi, no dia seguinte, ao vizinho Caresia relatar os seus problemas com o furto da comida, e se convenceu que só podia ter sido o mesmo desertor, o tal l’umini, que descobrira o caminho da sua casa.
        Passou-se o inverno, a Segunda Guerra Mundial tinha acabado e o tal desertor continuava escondido nas montanhas de Botuverá, interior de Santa Catarina. Novembro chegou, e as notícias eram as mesmas, o l’umini roubou mais comida na casa de outro cidadão, e assim chegou o verão. Preocupação aumentando, pois eles não poderiam nem deixar a casa aberta como era costume do lugar.
        Numa daquelas noites infernais de calor insuportável, no Beppe Molini, outro furto. Desta vez, levou um pedaço de polenta e um queijo de colono, daqueles preparados com muito zelo! Toda família ficou muito ofendida.
      - Ma che bruta bestia! (mas que bruto animal!) – bradou irado seu Beppe. 
        Aí, foi a última gota d’água, os homens da cidade se reuniram e foram ao Juiz de Paz. Relataram os fatos que durante todo o ano tinham aguentado e agora precisavam pegar o infeliz seja lá como fosse. Seu Maestri ouviu-os atentamente.
       - Urge uma solução! – falou avô Caresia.
      - Já tinha vindo o Venzon me contar um fato desses pela Páscoa... faz tempo!... - O juiz achou que o estranho já tivesse sumido do lugar. - "Anda por aí roubando a gente que se mata de tanto trabalhar, de sol a sol!" – falou Seu Beppe muito chateado – "Mas, ainda está por aqui?!" - Seu Maestri meneava a cabeça, inconformado.
O Juiz, então, escreveu uma carta e a enviou pelo correio (que andava a cavalo naqueles tempos, naquela região), com destino ao distrito policial de Brusque. De lá, enviaram uma mensagem pro 23 º Batalhão de Infantaria de Blumenau.
       Chegou final de ano, e em janeiro de 1946, o batalhão mandou seis soldados pra capturar o fugitivo. Levaram tenda e mantimentos, e foram acampar na densa mata. Chegaram afoitos pra pegar o desertor, com vontade de esmurrar aquele sujeito que sujara o nome dos combatentes e dos heróis da guerra.
        - Esse idiota pensa que ainda estamos em guerra!...hahahaha... - foram muitas risadas pelas trilhas da mata. Levaram dias, sim, o desertor conhecia palmo a palmo dos esconderijos, e se escapava dos militares. Deu trabalho!
Mas, com a ajuda do povo do lugar, pegaram-no na entrada das cavernas, bem ao romper da aurora, quando ele saiu da toca, assim... desavisado.
      – Ahahaha... ohohoh... o Fritz amarelou... ahahah... ohohoh... o Fritz amarelou!... e foram os colegas se divertindo de volta pro quartel com o medroso se borrando de raiva.
        Finalmente, os cidadãos de Botuverá tiveram sossego.

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                                                                   IZABELLA PAVESI