Fragmento 02

"Inspire.

Inspire o máximo de ar que conseguir. Essa estória deve durar aproximadamente o tempo que você consegue segurar sua respiração, e um pouco mais. Então escute o mais rápido que puder." - Chuck Palahniuk, em "Guts".

Eu gostaria de te lembrar algumas coisas, mas é uma pena que você não pode me ouvir.

Aquele dia. Aquela noite quente. Começo de noite, cedo, o sol tinha acabado de sumir lá pro lado dos ciprestes. Você apareceu com a costumeira altivez e vontade de se aparecer e me humilhou na frente dos meus amigos. Naquela idade a gente compreendia como laços de amizade as brincadeiras e o fazer das mesmas coisas o dia inteiro na rua, mas não costumávamos perceber uma situação vexatória e sentir empatia; ou seja, além de humilhado por você, fui caçoado pelos meus ditos amigos.

Tudo bem.

Teve aquela vez que fui privado de entrar em casa. Admito que não consigo recordar o porquê. É difícil rememorar os motivos de todas as penúrias que nos acometem quando temos dez ou onze anos de idade. Mas, o que pôde ser tão grave?

Quando enfim entrei, fui esculachado.

Sua filha, que também não pode me ouvir, me chamando de bastardo.

Escutei ela dizer que eu não valia o feijão que comia - e olha que nem de feijão eu gostava nessa época.

Que eu não tinha futuro.

Que eu seria catador de lixo.

Ajudante de pedreiro.

Lixeiro quando muito.

Vocês se divertiam, sádicas.

Eu não entendia porra nenhuma, mas não me sentia exatamente bem.

Vocês se lembram?

Hoje estou aqui e vocês... Bem, vocês estão aí.

Não me tornei nenhum desses profissionais que vocês abjetavam. Mas penso que se tivesse me tornado, não me sentiria mal, fracassado, pra baixo; exerceria minhas funções com honestidade e dedicação, qualidades que me privaram de rumar o mesmo destino que o seu filho teve.

Ah, sim, ele era o motivo por que vocês me acossavam e achacavam: o santo, o puro, a vítima, sempre a vítima, ele.

Se vocês pudessem vê-lo hoje em dia...

É foda pra caralho ter tanto a dizer, a provar, a se gabar, mas não ter você aqui pra me ouvir, Vó, dói. Por que morreu antes de ver tudo aquilo de mal que me desejou convergir para a vida daqueles que são e foram oriundos desse seu ventre nojento, sua puta?

Sua puta.

Sua puta velha filha da puta.

Você me odiou em todo o tempo que vivemos juntos, sob o mesmo teto.

Você seria capaz de me esganar enquanto eu dormia se sentisse que eu poderia servir de ameaça ao seu maldito filho.

E que diabos um pivete franzino podia fazer a um brutamontes carregador de caixas?

Será que você pode vê-lo?

Ele está um caco depois de tanto fumar pedra.

Magro de dar agonia.

Mora na rua.

Quando me vê, disfarça. Abaixa a cabeça.

Quando impávido olha, é um olhar úmido e temeroso de cachorro que teme por bicudas.

Sabe o que meu instinto quer que eu faça?

Ele quer que eu o espanque, quer que eu torture o miserável com requintes de crueldade.

É raro um dia que eu passe incólume do desejo de afundar um extintor no crânio dele.

Mas, infelizmente, não sou tão periculoso quanto àquela criança que você temia. Infelizmente... E, infelizmente é uma pena que você não possa ler isso.

Uma pena que você é só o nome em uma lápide que cães vadios cagam em cima.

Uma pena que o que sobrou de você já foi exumado e sabe-se lá que destino teve.

É uma pena que agora você é só uma lembrança desse meu ódio que tento execrar e não consigo.

É uma pena que eu não pude te mandar para o inferno enquanto pude.

Desgraçada.

Apesar de tudo, te devo gratidão.

Com você aprendi a não ser tudo aquilo que você queria.

Obrigado, Vó postiça.

13/11/2013 - 23h23m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 14/11/2013
Reeditado em 14/11/2013
Código do texto: T4569852
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.