Uma noite de arrepios

Um dia, não me lembro exatamente qual, apareceu na rua da minha casa, um menino que ninguém sabia ao certo de onde havia vindo. Tinha, além dos pais, duas irmãs mais velhas e uma cadela que atendia pelo nome de Bituca. O garoto era negro e, por isso, logo ganhou o apelido de Zé Pretinho. Era franzino, das canelas finas e o branco dos olhos e dentes era de dar inveja a qualquer um. Diziam que era muito estranho, que tinha medo de escuro, que na cidade de onde viera, não havia sequer luz de lamparina.

No primeiro dia de jogo, depois da sua chegada, ficou ali na lateral do campo, como quem não queria nada, mas, no íntimo, esperava uma oportunidade para jogar. Logo foi convidado para fazer parte do time. Como era novato, aceitou ficar no gol sem reclamação. Era um péssimo goleiro, mas melhor do que nada. Foi assim que garantiu sua primeira participação no “Peladeiros de Rua”. Nossa equipe era formada, na maioria, por garotos que moravam nas redondezas.

Nossas melhores partidas eram sempre as que aconteciam na quaresma, bem no Sábado de Aleluia. Jogávamos vestidos de mulher, cada um inventava sua indumentária que podia ser saia e blusa ou vestidos, longos e rodados. A única exigência era que fosse algo berrante. Uns passavam batom, outros penduravam flores nos cabelos, outros gritavam feito mulher. Do lado de fora a torcida barulhenta fazia sua parte: dava risada, jogava arroz, entrava no campo. Era tudo muito divertido.

Sua fama de medroso estendeu por todo o bairro. Até as meninas faziam piada quando ele passava. Na escola todos queriam assustá-lo, mas ele jamais se intimidou diante das gozações e das brincadeiras. Sempre tratava os colegas com cordialidade.

Um belo dia, sem ter o que inventar, eu e meus companheiros resolvemos que o nosso amigo deveria provar que não era diferente de nós, que a fama não lhe era devida. As sugestões foram borbulhando na cabeça de cada um de nós, mas a que prevaleceu foi a de que ele deveria ir até o cemitério e, quando fosse meia noite, pulasse o muro e voltasse imediatamente, depois que gritasse: eu sou um fantasma. Todos concordaram prontamente.

O mais engraçado foi que o próprio Zé Pretinho achou a idéia fantástica, ria de chorar e ninguém entendia nada.

Na noite combinada estava tudo muito escuro, nenhuma estrela nos brindou com o ar de sua graça, o frio era intenso, as luzes das ruas pareciam estar mais fracas do que de costume, tudo caminhava para o cavernoso. O cemitério ficava distante de nossas casas, mas nada que não pudéssemos ir caminhando, era algo como três ou quatro ruas a serem percorridas. Zé Pretinho foi o primeiro a chegar à minha casa, nada demonstrava que ele realmente estivesse receoso, muito pelo contrário, estava por demais seguro e tranqüilo. Chegou rindo e totalmente vestido de preto, no peito trazia um grande crucifixo preso por uma grossa corrente que brilhava conforme movimentava.

Logo os outros foram chegando. Nenhuma menina apareceu para testemunhar a bravura do nosso amigo. Acho que todas ficaram amedrontadas.

Zé Pretinho percebeu que alguns meninos estavam assustados, viu que escondiam uns atrás dos outros, nisso falou:

__ Quem vai pular o muro comigo levanta a mão.

Nada foi combinado. Todos nós enfiamos as mãos nos bolsos na mesma hora. O frio parecia ter aumentado, o vento assobiava como se estivesse rindo das nossas caras. Zé Pretinho tornou a falar:

__ Alguém vai ter que pular o muro comigo e levar o crucifixo, pois como vocês sabem, os vampiros gostam de ficar escondidos nos túmulos nas noites escuras e se eles aparecerem é preciso mostrar o crucifixo quando nos atacarem. Outra coisa, eu não sei se neste cemitério tem mula-sem-cabeça. Lá na minha cidade, quando é sexta-feira da paixão, todos os meninos da nossa idade vão para o Campo-santo pegar a tal mula. No ano passado, só eu consegui passar as mãos nela, dizem que depois disso, minha língua ficou mais preta e os dentes mais brancos... E continuou:

__ Se ela estiver por aqui, todo mundo vai ter que pular o muro para tentar pegá-la, senão ela vai fugir rapidamente. Meu avô, que era um negro muito forte, contava que só ele havia conseguido montar na tal mula e que a cabeça dela era quase invisível e muito grande - por isso é que dizem que ela não tem cabeça - contava ainda, que ela soltava labaredas de fogo pelas narinas e pulava por cima das covas sem encostar sequer os cascos em qualquer uma delas, por maior que fosse o coitado do defunto.

Depois de tantas e necessárias explicações fomos em direção ao cemitério. Confesso que até os cabelos da minha cabeça estavam arrepiados, não sei dizer ao certo se eu era o maior medroso da turma ou não. Sei que ninguém falou nada até que chegássemos ao muro onde Zé Pretinho teria que pular.

Quando nos aproximamos do local combinado, olhei no relógio para me certificar que estávamos muito próximos da hora pré-determinada. Olhei de viés para o menino que estava do meu lado, as feições dele era de pavor, os olhos estavam esbugalhados e vidrados. Parecia que tinha visto o capeta.

De repente, todos nós paramos, a parede estava logo ali, aos nossos pés. Não era alta, imagino que tivesse um metro e meio, quando muito. Por ironia do destino e infelicidade nossa, havia alguns desenhos pintados no muro, quando o vento assoprava e as árvores balançavam, eles pareciam ganhar vida, movimentavam de acordo com a direção que o vento tomava. Um dos meninos chegou a vomitar de tanta agonia, mas permaneceu firme e calado o tempo todo, parecia ter perdido parte da língua.

Zé Pretinho parecia um homem de pedra, enfiou a mão no bolso, retirou um velho relógio, que segundo fiquei sabendo mais tarde, era uma relíquia que seu avô lhe havia deixado de presente, consultou as horas e disse com tranqüilidade:

__ Meia noite em ponto, nem mais nem menos.

Em seguida perguntou olhando direto nos meus olhos.

__ Quem vai comigo?

Olhei para o chão morto de medo, fiz de conta que não era comigo. Implacável, ele voltou a perguntar:

__ Quem vai comigo?

Como não houve nenhum voluntário ele disse:

__ Vou sozinho, mas se demorar vocês todos terão que ir ao meu encontro, confesso que estou sentindo um calafrio enorme passando por dentro da minha alma.

Fechei os olhos para não vê-lo pular, só abri quando alguém gritou:

__ Pulou!

Ninguém falou uma única palavra, ficamos nos olhando e nos perguntando com os olhos: o que foi que aconteceu? Os minutos seguintes foram mortais, pareciam longas horas, o medo tomou conta de todos, até que alguém falou:

__ Vamos ter que buscá-lo. Vamos pular juntos. Quem pular por último é a mulher do padre. Vou contar até três... Um... Dois...

Pulamos ao mesmo tempo, cada qual demonstrava mais inquietude do que o outro. O silêncio era cadavérico, os túmulos amontoados pareciam ter vida, algumas velas ainda estavam acesas, ao longe pareciam olhos de gato. Um vaga-lume passou por nós como se fosse uma bola incandescente. Tudo parecia ser maior do que na realidade era.

Zé Pretinho estava estendido em cima de uma lápide na posição dos mortos, não mexia, não falava, acho até que nem respirava. Chegamos bem próximos para ver o que realmente havia acontecido e... Nada de ele mexer... Um de nós, então, cheio de coragem, pegou no seu pé. Ele deu um pulo e, já de pé, gritou: sou um fantasma! Em seguida, saiu correndo dando longas gargalhadas e muitas piruetas.

Alguns meninos caíram de costas, outros fizeram xixi nas calças. Um minuto depois, não havia mais ninguém dentro do cemitério. Saímos feitos malucos, uns atropelando os outros, enquanto Zé Pretinho gritava: olha a mula-sem-cabeça! Olha a mula-sem-cabeça!

Depois desse acontecimento ninguém mais teve coragem de chamar Zé Pretinho de medroso. Aquela foi a primeira e única vez que entrei no cemitério durante a noite. Zé Pretinho hoje é um velho que vive contando essa história para seus netos e amigos. Quando o encontro, ele ri e me diz: cuidado com a mula-sem-cabeça, ela tem sete palmos de altura e pode lhe pegar. Rimos na companhia um do outro, mas quem mais se divertiu, com certeza, foi aquele menino que o Zé Pretinho nunca deixou fugir de dentro dele.

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 20/04/2007
Reeditado em 01/11/2017
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