O sol inclemente lambia a terra seca deixando seus vincos no chão, enquanto rês magras, famintas e sedentas se esparramavam embaixo da craibeira a espera da queda das flores.
Meninos descalços tangiam um ou outro caprino com bicheira para longe dos demais, supervisionados pelos velhos de olhos tristes e rostos vincados como a terra de seus ancestrais.
A paisagem era praticamente a mesma de sua meninice.
Ainda que escassa, desmatada e transportada a outros ares, a caatinga permanecia valente, ferida, sofrida, amada, de queda em queda, a cada estação de chuva renovada, alimento, vida e esperança a todos os seus viventes, numa explosão de verde e flores, exaltando os sentidos, invocando novas cores.
O catingueiro é heróico, valente. Sua luta, diária. Seus dias, indefinidos.
A fisionomia pardacenta, empobrecida, vincada, esconde um segredo que só quem carrega a caatinga no peito conhece: O segredo da vida. Vida, ração para os animais. Vida, razão e ideais.
Tal qual a caatinga, tentaram mudá-lo, devastá-lo, oprimi-lo, mas, assim como essa terra – única de espécies tão particulares – sempre encontraria um meio, pois era um sobrevivente.
Era um catingueiro.
Tião apeou à porta do casebre de sua meninice.
Chapéu de couro na mão olhou ao redor em busca do cocho para dar de beber a seu cavalo Corisco.
Magneticamente, seus olhos foram atraídos para a casinha de barro.
Uma sombra perpassou seus olhos e Tião balançou a cabeça para dispersar pensamentos.
Rodeou a casinha e encontrou um cocho empoeirado, gasto pelo tempo e roído por animais.
Passou a mão na crina de Corisco e voltou à frente da casa.
Iria deparar com suas lembranças mais cedo do que esperava, mas antes disso, encontraria água para Corisco e nem precisaria cavar um poço para esse intento.
Um poço não, mas uma cacimba sim.
Tirou a sela, arreios, rédeas de Corisco e o deixou à sombra da algaroba no terreiro.
Pegou a enxada e um balde.
Olhou para a baixada onde avistara de relance um lamaçal.
Botou o chapéu na cabeça, ignorou o sol a pino e foi em busca de água.
No seu caminho, a criação sedenta olhava com olhos secos seu vagar firme e resoluto.
Andar de quem não se permitiria ceder às intempéries da vida.
Garganta seca, a sede também o fustigava.
Seu cantil, há muito vazio, permanecia na sela de Corisco, agora no chão batido do terreiro, onde seu padrinho – na verdade pai, como ele descobrira há pouco tempo – plantara a algaroba, esperança de muitos, frustração de todos.
Esperança porque da árvore se aproveitava tudo: a folha, a flor, a vagem, a madeira.
Frustração porque os entendidos da cidade fizeram da planta uma vilã. Alardearam que ela invadiria a caatinga, beberia toda a água e tomaria o solo fértil das outras espécies. Espécies nativas. Filhas da caatinga.
A semente da dúvida fora plantada.
Mesmo assim a algaroba vingou e pode ser vista nos tabuleiros, nas várzeas, nos terreiros, matando a fome da criação ao cair das primeiras vagens.
Pensativo, pegou algo no bolso. Girou entre os dedos e apertou como se fosse um amuleto. Devolveu o objeto ao bolso da calça e continuo sua caminhada.
Tião chegou ao rio seco e barroso – paradoxo que só a caatinga tem – e enfiou a enxada no barro deixando minar a água salobra.
Como que atraídos pelo cheiro da água, embora água não cheire,as cabras e também algumas ovelhas, despertaram para a vida e dispararam em busca de alívio para suas línguas sedentas.
Tião aprofundou um pouco mais a cacimba, encheu o balde e saiu com cuidado para não pisotear nenhuma rês na sua partida.
Corisco, impaciente, resfolegou à aproximação do amigo.
Tião emborcou toda a água do balde no cocho a fim de matar a sede de sua montaria.
Sanado o problema da sede, restava o problema da fome.
Olhou uma vez mais ao redor. Atravessou o terreiro.
Juazeiros, imburanas e quixabeiras despidas de suas vestes para suportarem a estiagem, olhavam além dos pereiros, ainda com algumas folhas em cor, o cercado dos bodes.
Junto ao cercado de seu bode – único exemplar caprino que ali já habitara e regalo de seu padrinho-pai –, Tião reconheceu os mandacarus, fiéis nativos de uma natureza sábia.
Quanto ao bode, morrera de bicheira, não por não falta de sapiência e sim por ter como dono um menino pobre, sem instrução e tímido.
Tirou a faca da perneira e feriu o mandacaru. Por ora a planta espinhenta serviria de alimento para seu animal faminto. Espinhos tirados, o cocho agora vazio acolheria os pedaços de mandacarus que alimentariam seu Corisco.
O cavalo se aproximou, focinhou e comeu o primeiro naco. Em poucos minutos não havia sinal da ração ali colocada.
Dever cumprido e cenho franzido, Tião se encaminhou para frente da sua antiga casa.
Chegara o momento de ajustar contas com as lembranças e cumprir promessas do passado.
O ranger da porta de madeira de mandacaru trouxe de volta sons de sua meninice.
O sininho dos cabritos vagueando em busca de comida, da ararinha azul – hoje não mais vista no alto dos umbuzais –, a risada de sua mãe em tempo de verde e cor, encantada com as flores trazidas nas parcas visitas de seu padrinho – pai, o zum, zum, zum das abelhas sem ferrão.
Cerrou os olhos e num átimo, a velha sala estava de volta com sua pequena mesa de angico e seus grandes bancos de aroeira.
No quarto arejado em que dormia, o retrato ainda na parede mostrava a Jurema.
Não a jurema preta,flor da caatinga que surge num espetáculo de vida em flores brancas depois que a chuva cai,atraindo abelhas e espalhando vida.
Não essa, mas outra flor da caatinga. Tão bela quanto. Provedora de igual valia. Mão cheia para cozidos de gratos sabores.
A carne de sol no tacho com maxixe, acompanhada com manteiga de garrafa, ficava ainda melhor com a farofa de macaxeira.
Para adoçar a boca, rapadura. Tudo feito com prestativo carinho no fogão de lenha que deixava um calor gostoso, confundido com o próprio calor de sua mãe. Sua meiga mãe Jurema.
Tal qual a flor que lhe deu o nome e que dura de três a cinco dias depois que floresce, rápido se foi Jurema dessa vida – estrepada de imbuzeiro por tentar salvar cria nova fugida. Mas a exemplo da flor que volta a cada estação de chuva, sua mãe Jurema não voltou.
Foi no mesmo dia que seu bode recém-capado sucumbira à infecção. Nem o sal e a cinza de pau queimado surtiram efeito contra a bicheira, mas ao sal da terra e de volta às cinzas foi reclamado o corpo da Jurema.
Quiçá um dia voltasse Jurema em época de chuva junto com a malva, a jurema d’água, cabeça de velho, a catingueira e a jurema preta, fazendo parte dessas seletas flores da caatinga, ainda que por um momento efêmero, mas aguardado com ânsia e enternecido no peito dos mais valentes dos vaqueiros.
A ameaça de lágrimas inundou seus olhos.
Tião voltou à sala e desta foi ao terreiro.
O céu anunciando o entardecer lembrava o mesmo céu de sua meninice,quando de cima do pau de arara que o levara embora da caatinga, jurara com olhos úmidos – único sinal de umidade naquela estação triste de seca – que um dia voltaria à caatinga de sua mãe e realizaria o desejo de seu padrinho-pai: Plantaria novamente as algarobas caatinga adentro.
Tião tirou do bolso uma semente de algaroba. Apertando a semente com força, olhou o céu já tingido de sombra e comprimiu os lábios.
Também seu padrinho – pai havia partido. Fora em busca de sua mãe – única mulher que amara em sua curta vida, embora outra levasse seu nome.
Como num cerimonial, levou a semente aos lábios e nela depositou um ósculo.
Caminhou para o meio do terreiro, relembrou das prosas do padrinho – seu pai a pouco descoberto, há muito desejado – e num vislumbre do passado, reviu as muitas sementes como aquela, plantadas e espalhadas pela caatinga, brotando,crescendo e matando a fome da criação para posteriormente chegarem tempos de polêmicas, medo, superstições, blasfêmias a bocas pequenas contra a algaroba que tão bem fizera aos catingueiros. Sua gente. Seus irmãos.
Agachou-se. Com a própria mão cavou um buraco e jogou a semente. A primeira de muitas que ele plantaria. Pelo bem ou pelo mal, seu intento estava feito.
O tempo diria quem estava com a razão. Mas até lá, muitos seriam salvos da inclemente fome que de certo viria.
Levantou-se. Limpou as mãos na calça e sentiu-se grande. Tudo ficaria bem. Ele estava em casa.
Agora também era um entendido da cidade, mas com a vantagem de ser o filho da terra. Sua terra.Um catingueiro.
Pelo sal de sua terra, ao romper da primeira algarobeira, renovar-se-ia a esperança...
E ele cumpriria sua promessa.
Meninos descalços tangiam um ou outro caprino com bicheira para longe dos demais, supervisionados pelos velhos de olhos tristes e rostos vincados como a terra de seus ancestrais.
A paisagem era praticamente a mesma de sua meninice.
Ainda que escassa, desmatada e transportada a outros ares, a caatinga permanecia valente, ferida, sofrida, amada, de queda em queda, a cada estação de chuva renovada, alimento, vida e esperança a todos os seus viventes, numa explosão de verde e flores, exaltando os sentidos, invocando novas cores.
O catingueiro é heróico, valente. Sua luta, diária. Seus dias, indefinidos.
A fisionomia pardacenta, empobrecida, vincada, esconde um segredo que só quem carrega a caatinga no peito conhece: O segredo da vida. Vida, ração para os animais. Vida, razão e ideais.
Tal qual a caatinga, tentaram mudá-lo, devastá-lo, oprimi-lo, mas, assim como essa terra – única de espécies tão particulares – sempre encontraria um meio, pois era um sobrevivente.
Era um catingueiro.
***
Tião apeou à porta do casebre de sua meninice.
Chapéu de couro na mão olhou ao redor em busca do cocho para dar de beber a seu cavalo Corisco.
Magneticamente, seus olhos foram atraídos para a casinha de barro.
Uma sombra perpassou seus olhos e Tião balançou a cabeça para dispersar pensamentos.
Rodeou a casinha e encontrou um cocho empoeirado, gasto pelo tempo e roído por animais.
Passou a mão na crina de Corisco e voltou à frente da casa.
Iria deparar com suas lembranças mais cedo do que esperava, mas antes disso, encontraria água para Corisco e nem precisaria cavar um poço para esse intento.
Um poço não, mas uma cacimba sim.
Tirou a sela, arreios, rédeas de Corisco e o deixou à sombra da algaroba no terreiro.
Pegou a enxada e um balde.
Olhou para a baixada onde avistara de relance um lamaçal.
Botou o chapéu na cabeça, ignorou o sol a pino e foi em busca de água.
No seu caminho, a criação sedenta olhava com olhos secos seu vagar firme e resoluto.
Andar de quem não se permitiria ceder às intempéries da vida.
Garganta seca, a sede também o fustigava.
Seu cantil, há muito vazio, permanecia na sela de Corisco, agora no chão batido do terreiro, onde seu padrinho – na verdade pai, como ele descobrira há pouco tempo – plantara a algaroba, esperança de muitos, frustração de todos.
Esperança porque da árvore se aproveitava tudo: a folha, a flor, a vagem, a madeira.
Frustração porque os entendidos da cidade fizeram da planta uma vilã. Alardearam que ela invadiria a caatinga, beberia toda a água e tomaria o solo fértil das outras espécies. Espécies nativas. Filhas da caatinga.
A semente da dúvida fora plantada.
Mesmo assim a algaroba vingou e pode ser vista nos tabuleiros, nas várzeas, nos terreiros, matando a fome da criação ao cair das primeiras vagens.
Pensativo, pegou algo no bolso. Girou entre os dedos e apertou como se fosse um amuleto. Devolveu o objeto ao bolso da calça e continuo sua caminhada.
Tião chegou ao rio seco e barroso – paradoxo que só a caatinga tem – e enfiou a enxada no barro deixando minar a água salobra.
Como que atraídos pelo cheiro da água, embora água não cheire,as cabras e também algumas ovelhas, despertaram para a vida e dispararam em busca de alívio para suas línguas sedentas.
Tião aprofundou um pouco mais a cacimba, encheu o balde e saiu com cuidado para não pisotear nenhuma rês na sua partida.
Corisco, impaciente, resfolegou à aproximação do amigo.
Tião emborcou toda a água do balde no cocho a fim de matar a sede de sua montaria.
Sanado o problema da sede, restava o problema da fome.
Olhou uma vez mais ao redor. Atravessou o terreiro.
Juazeiros, imburanas e quixabeiras despidas de suas vestes para suportarem a estiagem, olhavam além dos pereiros, ainda com algumas folhas em cor, o cercado dos bodes.
Junto ao cercado de seu bode – único exemplar caprino que ali já habitara e regalo de seu padrinho-pai –, Tião reconheceu os mandacarus, fiéis nativos de uma natureza sábia.
Quanto ao bode, morrera de bicheira, não por não falta de sapiência e sim por ter como dono um menino pobre, sem instrução e tímido.
Tirou a faca da perneira e feriu o mandacaru. Por ora a planta espinhenta serviria de alimento para seu animal faminto. Espinhos tirados, o cocho agora vazio acolheria os pedaços de mandacarus que alimentariam seu Corisco.
O cavalo se aproximou, focinhou e comeu o primeiro naco. Em poucos minutos não havia sinal da ração ali colocada.
Dever cumprido e cenho franzido, Tião se encaminhou para frente da sua antiga casa.
Chegara o momento de ajustar contas com as lembranças e cumprir promessas do passado.
***
O ranger da porta de madeira de mandacaru trouxe de volta sons de sua meninice.
O sininho dos cabritos vagueando em busca de comida, da ararinha azul – hoje não mais vista no alto dos umbuzais –, a risada de sua mãe em tempo de verde e cor, encantada com as flores trazidas nas parcas visitas de seu padrinho – pai, o zum, zum, zum das abelhas sem ferrão.
Cerrou os olhos e num átimo, a velha sala estava de volta com sua pequena mesa de angico e seus grandes bancos de aroeira.
No quarto arejado em que dormia, o retrato ainda na parede mostrava a Jurema.
Não a jurema preta,flor da caatinga que surge num espetáculo de vida em flores brancas depois que a chuva cai,atraindo abelhas e espalhando vida.
Não essa, mas outra flor da caatinga. Tão bela quanto. Provedora de igual valia. Mão cheia para cozidos de gratos sabores.
A carne de sol no tacho com maxixe, acompanhada com manteiga de garrafa, ficava ainda melhor com a farofa de macaxeira.
Para adoçar a boca, rapadura. Tudo feito com prestativo carinho no fogão de lenha que deixava um calor gostoso, confundido com o próprio calor de sua mãe. Sua meiga mãe Jurema.
Tal qual a flor que lhe deu o nome e que dura de três a cinco dias depois que floresce, rápido se foi Jurema dessa vida – estrepada de imbuzeiro por tentar salvar cria nova fugida. Mas a exemplo da flor que volta a cada estação de chuva, sua mãe Jurema não voltou.
Foi no mesmo dia que seu bode recém-capado sucumbira à infecção. Nem o sal e a cinza de pau queimado surtiram efeito contra a bicheira, mas ao sal da terra e de volta às cinzas foi reclamado o corpo da Jurema.
Quiçá um dia voltasse Jurema em época de chuva junto com a malva, a jurema d’água, cabeça de velho, a catingueira e a jurema preta, fazendo parte dessas seletas flores da caatinga, ainda que por um momento efêmero, mas aguardado com ânsia e enternecido no peito dos mais valentes dos vaqueiros.
A ameaça de lágrimas inundou seus olhos.
Tião voltou à sala e desta foi ao terreiro.
O céu anunciando o entardecer lembrava o mesmo céu de sua meninice,quando de cima do pau de arara que o levara embora da caatinga, jurara com olhos úmidos – único sinal de umidade naquela estação triste de seca – que um dia voltaria à caatinga de sua mãe e realizaria o desejo de seu padrinho-pai: Plantaria novamente as algarobas caatinga adentro.
Tião tirou do bolso uma semente de algaroba. Apertando a semente com força, olhou o céu já tingido de sombra e comprimiu os lábios.
Também seu padrinho – pai havia partido. Fora em busca de sua mãe – única mulher que amara em sua curta vida, embora outra levasse seu nome.
Como num cerimonial, levou a semente aos lábios e nela depositou um ósculo.
Caminhou para o meio do terreiro, relembrou das prosas do padrinho – seu pai a pouco descoberto, há muito desejado – e num vislumbre do passado, reviu as muitas sementes como aquela, plantadas e espalhadas pela caatinga, brotando,crescendo e matando a fome da criação para posteriormente chegarem tempos de polêmicas, medo, superstições, blasfêmias a bocas pequenas contra a algaroba que tão bem fizera aos catingueiros. Sua gente. Seus irmãos.
Agachou-se. Com a própria mão cavou um buraco e jogou a semente. A primeira de muitas que ele plantaria. Pelo bem ou pelo mal, seu intento estava feito.
O tempo diria quem estava com a razão. Mas até lá, muitos seriam salvos da inclemente fome que de certo viria.
Levantou-se. Limpou as mãos na calça e sentiu-se grande. Tudo ficaria bem. Ele estava em casa.
Agora também era um entendido da cidade, mas com a vantagem de ser o filho da terra. Sua terra.Um catingueiro.
Pelo sal de sua terra, ao romper da primeira algarobeira, renovar-se-ia a esperança...
E ele cumpriria sua promessa.