CONFIDÊNCIAS DO CÉU

PARTE I

Ainda sob o barulho dos trovões e os lindos raios iluminados de relâmpagos fartos, Júlio fechou a pesada porta da Igreja de Nossa Senhora do Pilar. Era um ritual. Todos os dias, às seis horas a igreja era aberta para a primeira missa da cidade, que não reunia muita gente, apenas algumas piedosas senhoras e uns poucos devotos que se ocupavam da santa celebração antes de se dirigirem ao trabalho.

Rio Acima do Pilar é uma pequena cidade encravada num vale rodeado de montanhas com verde exuberante, de gente simples que vive quase que do trabalho no campo. O belo templo é um dos mais antigos do país. Construído no século XVI era uma simples capelinha no início, e ao longo de cinquenta anos foi tomando as proporções que hoje se impõem do alto do Morro da Boa Vista, com sua fachada a mostrar-se para toda a cidade. A longa escadaria que compõe o belo conjunto arquitetônico nos possibilita a visão de duas torres em movimento ao subir com o olhar fixo para o alto, privilégio negado aos que precisam utilizar a rampa ou a estrada moderna que se encontra com os fundos da igreja.

Tudo nela impressiona. Bandeirantes e devotos que ali formaram um pequeno povoado às margens do Ribeirão dos Gonçalves onde no passado brilhava ouro de aluvião, muito do qual está na decoração da igreja. Exploradores vieram, formaram família e ali estabeleceram sua vida, longe da capital. Júlio, como quase todos os moradores são descendentes desses homens. Hoje em dia eles nem mais fazem memória a esse passado, mas o passado se faz presente dentro daquele templo, e ninguém sabia disso.

Era o dia 21 de outubro de 1655 quando a nova igreja foi inaugurada. O padre celebrou missa solene e abriu a pesadíssima porta de cedro talhada pelo escultor da cidade com motivos religiosos. Toda a cidade estava presente e músicos tocavam flautas e violões. Padre Paulo Afonso entronizou nos nichos as imagens que mandara buscar da Europa. Vieram de navio e depois em carruagens, sempre acompanhada em solo brasileiro pelo reverendo, que todas as noites nos caminhos celebrava missa antes do anoitecer e do acampamento de descanso. As imagens eram de Santo Antônio, São Francisco, uma imagem do Senhor Morto com Nossa Senhora das Dores, todas essas em tamanho natural, claro, além de uma bela imagem ornada a ouro de Nossa Senhora do Pilar. Havia ainda imagens menores de Santa Joana D’arc, Santana e São Joaquim, Santo Ambrósio e São Bento, Santa Bárbara e Santa Luzia, além de outras de santos populares na Europa e desconhecidos no Brasil.

Conta-se que um dia, um cavalheiro-guarda vira a imagem de Santo Antônio sorrir. Claro, todos pensaram que ele estava bêbado e riram dele. Celestino, outro guarda não riu. Dizem, mas ninguém sabe por que este era mudo, que por gestos ele tentava dizer que também vira algumas das imagens com movimentos leves. Tudo passou como lenda. Nada mais. Aquelas imagens haviam sido abençoadas por um padre muito santo, diziam, que as aspergiu com um pouco da água em que haviam sido lavadas relíquias sagradas.

O alaranjeado do ocaso dava o tom de festa naquele fim de tarde de primavera. As montanhas pareciam render graças à grande inauguração e prontificavam-se a ser as guardiãs não só da vila mas também daquelas imagens tão solenemente entronizadas no novo templo. Os santos foram todos colocados nos seus nichos e o padre relembrou as aventuras nos caminhos, nos vários dias que passaram caminhando até chegar à vila. As histórias de que o santo sorriu chegou bem antes e deixava as pessoas curiosas para ver algum movimento de Santo Antônio. No entanto, eram imagens tão comuns, tão iguais às que as pessoas possuíam em suas casas. Nunca mais ninguém ouviu dizer nada de santos que se mexem. A lenda, que tomou corpo, permaneceu e atraía turistas e curiosos ao longo do tempo. Pessoas ficavam quietas por longo tempo observando as imagens e dizia ver movimentos leves. Ninguém nunca dera crédito, pois, diziam, era ilusão de ótica. E era mesmo.

PARTE II

21 de outubro. Celebra-se hoje os trezentos e cinquenta anos da inauguração do templo. Neste dia, Maria Olívia participou da celebração com uma intenção especial. Sua filha sofria de uma doença incurável, e alheia ao que o padre dizia e dentro de si presa e aflita fez a seguinte prece:

Meu bom Senhor Jesus, dos passos pesados e lentos com a injusta cruz às costas, peço-lhe com toda fé que cure minha filha. A ela somente eu tenho neste mundo. Não me deixe sozinha meu bom Senhor. Lembre-se de sua solidão na tortura e na escuridão da morte. Não permitas que eu vague pela sombra do isolamento. É o que lhe peço meu bom Jesus.

E mirando a imagem do Bom Jesus numa capela especial na lateral direita da igreja acreditava com toda sua força interior que seria atendida.

Circulando pela igreja, já depois da cerimônia tão pomposa e já no escurecer, Júlio a observava ao longe. Ela parecia estar em estado de êxtase e passava por cada nicho fazendo sua oração a cada um dos santos. Pediu a São Francisco com intensa devoção que intercedesse ao Pai Criador que atendesse seu pedido. Pareceu ver um sorriso nos lábios da imagem. E se foi. Confiante.

Naquela noite chuvosa Júlio desceu a escadaria apressado tentando não se molhar, o que era inútil diante da torrencial chuva que lavava a cidade. Na pressa de ir embora tão rapidamente acabou esquecendo uma luz acesa próximo à porta dos fundos. De sua casa, duas ruas acima ele sempre contemplava a igreja antes de ir dormir. Mirava as duas belas torres e fazia suas orações.

Júlio era um viúvo zeloso e dedicava-se à Igreja. Seus dois filhos mudaram-se para ter uma vida melhor, mas sempre o visitava. Era um bom homem.

Passava da meia noite quando, ao fazer suas orações percebeu a luz acesa, fruto de seu esquecimento. A chuva havia diminuído, estando agora somente com alguns chuviscos. Os relâmpagos, no entanto, estavam intensos ainda e a cidade se iluminava intermitentemente. Júlio nem precisou pensar. Vestiu seu sobretudo, chapéu na cabeça e se foi, escadaria acima para apagar aquela luz. Não se permitia um mínimo de descuido para com a casa de Deus.

PARTE III

A porta do templo é pesada, e quando chovia, rangia ao abrir e fechar, o que, àquela hora poderia incomodar e chamar a atenção desnecessariamente dos vizinhos. Então, com uma suavidade incomum, Júlio abriu um pouco somente e adentrou ao templo. Suas mãos tremeram e seu coração ficou gélido ao olhar para a nave e testemunhar o que nenhum humano provavelmente teria visto. Seu braço ainda estava erguido rumo ao interruptor e assim deve ter permanecido diante de tamanha surpresa. Ele ficou atônito. Com flashes iluminados pelos relâmpagos ouviu um sorriso que vinha de um rosto iluminado. Era São Francisco.

Júlio não podia acreditar no que seus olhos viam. Sim. Ele viu o Bom Jesus falando de Maria Olívia e de sua filha. Francisco, rosto iluminado pela luz do Senhor lembrava-se do primeiro pedido feito naquela igreja, de um senhor que estava com a mulher em leito de morte e não pôde ir à recepção das imagens. São Francisco intercedeu e ao chegar à casa a mulher estava de pé, fazendo um café para o marido que havia ido à igreja. Júlio não conseguia conter a emoção. Olhou para os altares. Estavam vazios. Todos. Os santos estavam assentados nos bancos conversando e relatando ao Bom Jesus e à Virgem do Pilar os pedidos tantos, os agradecimentos tão variados daquele dia. Riam-se ainda, de um pedido que fora feito ao final da missa da noite por uma senhora viúva e solitária, que pedira que a chuva, que já se anunciava ao ocaso, viesse calma e sem trovoadas, pois estaria só em sua casa e tinha muito medo das tormentas. Santana sorria e pediu que as trovoadas não fossem intensas. A ela foi dirigida a súplica de tão penitente senhora.

__ Pois bem meus filhos, dizia o Senhor, que temos para hoje?

Francisco era sempre o santo mais falante. Contemplava dia inteiro rostos e olhares. Tinha sempre compaixão dos filhos de Deus, não importa quem fosse ou o que fizessem. Levantou-se.

__ Meu Bom Jesus. Hoje foi um dia de festa e ficaríamos por muito tempo relatando pedidos. Gostaria de interceder pela menina Geisiane. Ela chorou escondido por dentro, ferida. Apenas os olhos se umedeceram ao final da missa. Ela tem um pai alcoólatra e agressivo. O meu pai também era Senhor. Conceda-lhe esta graça se for sua vontade.

__ Hoje eu ouvi uma mulher pedindo casamento, disse Antônio. Ela já se apaixonou inúmeras vezes e até já conseguiu um longo noivado. Impulsiva Senhor. Mas tenho compaixão. Dá-lhe um coração ameno e a questão do marido fica para uma próxima.

Jesus sorriu da santidade de Antônio, tão atento e tão carinhoso. Não queria ferir ninguém, não queria algo que não fosse para ser duradouro. Assim Antônio ia se desfazendo de sua aura de santo casamenteiro, porque nunca intercedia por um casamento em primeiro momento. Diante do sorriso do Mestre e dos colegas, desabafou:

__ Gente, ninguém me pede outra coisa! Não sei por que todos me pedem casamentos! Mas eu ouço com carinho e fico olhando o coração dos jovens solitários. Ainda tão indecisos e tão imaturos diante de um sentimento que ainda desconhecem. (pausa) Ah, já ia me esquecendo, hoje foram tantos pedidos. Mas Senhor, Dona Geraldo está viúva há 15 anos, está já idosa e sozinha. Os filhos distantes... nem ligam. Ela hoje disse que estava envergonhada de pedir, mas fitou meu olhos e pediu um velhinho para sua companhia. Ah meus amigos, tive que me controlar para não rir na hora, pois ela me dirigiu palavras quase infantis. Dizia ela que podia ser um caduquinho que tava bão. E chegou a marejar uma lágrima. Mas conteve-se.

__ Ótimo, interrompeu Santa Luzia. Hoje veio o Horácio me pedir uma visão melhor. Ele também está idoso e nunca se casou. Já me contou uma vez que era apaixonado por uma amiga de infância, mas que já falecera. Então meu Bom Jesus, minha amada Mãe do Pilar, quem sabe se a gente não junta os dois?

Jesus sorria de tudo. E ao final de um sorriso, disse:

¬¬__ Concedido. Amanhã eles se encontram na farmácia e se apaixonam. Serão felizes.

Antônio amava seus pedidos aceitos. Era um homem bom. Muito próximo do Senhor. A confidência dos céus continuava:

__ Eu ouvi hoje muitas avós pedindo proteção para os netos meu querido Jesus, disse Ana. Estão longe deles. Eu igualmente pedia a Deus por você meu neto. Sempre longe de mim, sempre longe de minhas carícias. Coração de vó é amargurado longe dos meninos. Protege meu Jesus, todos os meninos delas.

E assim os santos iam relatando para Jesus pedido a pedido, lembrando os agradecimentos e inclusive a oração do prefeito que pedia pra se reeleger. Jesus ria dos pedidos, principalmente das crianças que se ajoelhavam diante da sua imagem com mãos postas e diziam “Papai do céu”.

__ Crianças sempre pedem, mas pedem com a inocência própria delas. Uma bicicleta, um tablet, um celular, um brinquedo... Mas me comovem aqueles que pedem comida. São meus filhos inocentes mergulhados na dor por causa de meus filhos gananciosos. Como eu sonho que alguém use da liberdade dada à humanidade e volte ao mundo perfeito como meu Pai o criou.

Maria chorou um pouco e pediu ao filho que os corações humanos se abrandassem. Joana D’arc levantou-se, pôs as mãos para o alto, levantou a espada e pediu que ela fosse enviada com uma legião para uma batalha espiritual no coração humano, o mais terrível dos territórios.

Para aliviar a conversa, Antônio pediu a palavra. O Bom Jesus concedeu.

__ Irmãos, disse num tom solene. Sabemos que nem todos os pedidos podem ser atendidos. Sabemos que todos querem e todos dirigem com fé suas preces a nós. Já é consenso e todos já dirigiram ao Senhor sobre a filha de Olívia. O Senhor lhe concederá a cura pela intercessão de Francisco. Mas vamos falar dos demais pedidos de hoje.

E foi repassando os pedidos tantos feitos naquele dia. Começou. Para o Álvaro, o carro pedido não será concedido este ano, pois se o fizer, ele sofrerá um acidente fatal. Hermínia não poderá se mudar este ano, pois o pai vai adoecer e precisará dela por perto. Júlia não se casará porque seu noivo tem outra e ela vai descobrir depois da data que ela pensa em se unir.

Nisso, Francisco sorriu e continuou:

__ Licença Antônio, mas lembrei do pedido de Carlinhos que deseja muito passar de ano. Só que ele não estudou nada. Não vai ser possível. E ainda a Mônica, menina levada, mas que vai conseguir o coração de Rubens, porque serão uma linda família no futuro e seu segundo filho será padre. Ester não irá à festa de formatura de sua irmã, como pedido. Ester está longe e teria que deixar o filho cadeirante nas mãos de uma amiga que não cuidará bem dele.

Nisso, o anjo que ornamenta o altar principal pediu:

__ Gente, não estou conseguindo acompanhar tudo.

Ele era o responsável por anotar os pedidos, concedidos ou não e entregar ao Senhor. Em sua mão havia uma pena que usava para anotar os pedidos no livro que o Senhor lhe entregava. Ele continuou pedindo a Jesus que aliviasse um pouco, pois também tinha muitos pedidos no coração, de muitas crianças que olhavam para seu rosto e repetiam;

“Meu anjo da guarda

meu bom amiguinho

guiai-me sempre

no bom caminho.”

Jesus o interrompeu dizendo:

__ Tudo bem meu querido colaborador. Vou guardando aqui, e em outra hora me relate os seus pedidos.

Olhou para sua mãe com ternura e beijou-lhe a face. Falou de Júlio, o bom zelador da capela e disse que um dia este estaria entre nós, relatando pedidos e ouvindo as orações.

Nossa Senhora disse, em gargalhadas:

__ Ah meu filho, bom Jesus, Júlio hoje ficou observando Maria Olívia rezar e ficou imaginando mil coisas. Ele acreditava que ela estaria pedindo um marido. Estava até espantado. Júlio já se acostumou a escutar cochichos e orações, que quase já se tornou um intercessor. Fica horas esperando os devotos rezarem sem pressa. É um santo homem.

PARTE IV

Júlio, ao fundo, percebeu que falavam dele. Deixou cair as chaves. Os santos ouviram e num instante quase que mágico, o Bom Jesus fixou os olhos no bom homem. Sorriu apenas. Os olhos de Júlio se fecharam diante de uma luz que não parecia ser dos raios que ainda insistiam lá fora. Ao abri-los, todos os santos estavam nos seus respectivos nichos. Tudo parecia como sempre foi. Júlio quis correr, mas reuniu forças para encarar o imprevisível. Acendeu as luzes da igreja e observou cada lugar. Não sabia se sonhara ou se tudo era real. Sentia ele ter experimentado um pedaço do céu. Seu corpo estava com uma suavidade incomum para as leis da física, ele parecia flutuar, tanto que observava e parecia não crer que seus pés realmente tocavam o chão. O anjo estava no altar lateral, com suas asas estendidas. Luzia segurava seu pratinho com os olhos. Antônio e Francisco, imóveis. Nossa Senhora do Pilar lhe pareceu estranha, parecia estar com a aparência de um movimento de sorriso que não lhe era familiar. O Bom Jesus com os braços erguidos ao céu parecia apenas a imagem, como sempre foi. Todos estavam tão iguais...

Júlio, ainda assustado, mas em paz, desceu a ladeira e voltou para casa. Assustou-se ao olhar para o relógio e ver que já eram quase quatro da manhã. Meu Deus, pensou ele, já é quase a hora da primeira missa. Deitou-se um pouco. Quem disse que ele dormia. Remoeu cada palavra ouvida e pensou em dizer tudo para o padre. Cochilou brevemente e sonhou com aquele bondoso olhar do Mestre. Acordou, coração acelerado e levantou-se. Eram já cinco e meia. Correu e abriu a igreja, tocou suavemente os sinos convidando a população para a missa matinal. Correu o olhar nos santos. Exatamente tudo como estava. Chegou a pensar que havia cochilado na igreja e tudo aquilo não passara de um sonho. Afinal ele estava muito cansado das festividades do dia e... deve ter sido isso, pensou. Sorriu. Impossível, pensava. Não faz o menor sentido.

Começou a missa e Júlio não conseguia se concentrar em uma única palavra do padre. Só se fixou quando este disse:

¬¬__ Não pensem, meus irmãos, que Deus não nos escuta. Ele nos ouve o tempo todo. Ao dirigir sua oração ele está pronto para acolher nossos pedidos e agradecimentos e os guarda em seu coração e nos concede aquilo que a nós convém.

Júlio acelerou seu coração ao ouvir estas palavras. E foi recordando tudo o que vira e ouvira, ou melhor, imaginara ter visto e ouvido. Estava mesmo convencido de que era apenas um sonho. Um belo sonho.

Fim da missa. Todos se foram e Júlio estava só, observando os santos. Tudo como sempre fora. Fechou as portas laterais e deixava a porta principal aberta para os fieis que visitavam a igreja durante o dia para as orações. Já estava no terceiro degrau, descendo a escadaria.

__ Júlio, gritou o padre. Venha aqui por favor.

__ Pois não padre Jorge. Precisa de algo?

__ Temos que observar melhor igreja. Acho que alguém entrou aqui ou mexeu nas imagens quando nos distraímos. Veja.

E mostrou ao sacristão a pena do anjo, dizendo que estava jogada ao chão, próximo à imagem do Bom Jesus.

__ Temos que ficar atentos Júlio, muitas pessoas visitam a igreja. Esta pena é de ouro e não poderíamos comprar outra para colocar no lugar. Quem a quis levar, deixou-a cair. Dona Isolda que encontrou.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 09/11/2013
Código do texto: T4564048
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