A coisa
É simples, meu bem. Abra seus olhinhos castanhos e veja. Veja só você: é uma garota complicada. A coisa é simples. Mas está inteira fora de cogitação. A coisa sequer foi proposta. A coisa não é um repertório, mesmo que vago. A coisa não se descreve nos manuais, não se desenha em mapas. Não está estampada no seu rosto escandalizado. Tampouco está registrada em seu caderno de cabeceira. A coisa não é o poema, meu bem. Você não é mais uma menininha. Agora se preocupa com o curso de assuntos mais urgentes. Mais agudos. Frequenta círculos clandestinos e bem equipados. Você conspira. Você tenciona derrubar um sistema. Sua presença pálida oscila diante do precipício. Porém, desta vez, você permanece alerta e sóbria. Tem um plano. Imagina um futuro. Você é uma máquina mortífera. Mas não façamos da coisa toda um fetiche, meu bem. A coisa é simples. Simplista.
Pé ante pé, você sobe as escadas: ouvido apurando qualquer ruído. Atenta. Abre a porta, entra e dá duas voltas na chave. Agora está segura. Você ofega imperceptivelmente, quase disfarçando. Mas eu vejo, estou bem perto de você nesse momento: meu corpo há dois palmos do seu. Retenho minha respiração para não deformar a sua. Escolto-te até a cama. Você não está assustada, apenas livre. Deseja um cigarro. Mas parou de fumar. Deita-se e abraça o lençol isento de quaisquer vestígios distintos dos seus. Você não tem ídolos. É uma figura pós-apocalíptica. Um corcel selvagem. Olho-te cada vez mais de perto. Sei até onde posso resistir. Em algum momento meu corpo perde a consistência e terei de desviar a vista. Por isso aproveito cada segundo. Seus cílios tremelicam de leve, bem de leve. Vejo as duas pintas da face. Duas ilhas aprisionadas em deserto sem mácula. Perco longos minutos nas bochechas, nariz, boca. Depois passo às mãos. O esmalte descascando nas unhas. Os anéis de cigana, distribuídos sem ordem em dedos que agora contornam solenemente os lábios. Sozinha, pode se deixar distrair um pouco. Mas somente um pouco. É preciso ser de ferro.
Não é como se eu estendesse o braço e desse uma volta em sua cintura. Não é como se você me permitisse te atirar na cama com fúria e te subjugar com minha violência. A coisa é outra. Talvez um jogo. Você teria sangue-frio para jogar? Acaso você não se envaidece quando minha mão se aproxima de sua face em um gesto de amor, meu bem? A coisa não tem solução. A coisa propõe, no máximo, um soluço irreparável. O que acontece é que agora eu tenho muito tempo. Todo tempo do mundo para ver-te sendo menos minha a cada instante. Independência ou morte? Mas não existe esse discernimento: você é uma potência.
Quanto a mim, urge que seja forte e robusto, um cavaleiro de armadura e lança. Assim para proteger-te dos males. Urge que eu seja frágil e fácil de enganar. Assim para satisfazer-te taras maternas. Urge que eu seja cínico e patife. Assim para meter-te a mão entre as coxas quando necessitar gozo. Urge que eu seja seus objetos preferidos ou que seja sua roupa íntima. Urge que eu seja a água que te lava e o sonho que te arrebata. Urge que eu seja suas sobras e suas economias. Urge que eu seja seu devaneio e sua resolução. Mas, em suma, sou apenas o meu e o seu limite. Sou uma limitação sem congruência ou forma. O ponto a partir do qual não é mais permitido avançar um passo que seja. Sou o fantasma que, cada vez mais raramente, sopra uma lembrança morta em seu ouvido. Amar-te assim não é um suplício. Na verdade, talvez seja puro. No entanto, persiste em devorar-me o medo contínuo de que o mundo não cuide de você como eu cuidaria, meu bem. Medo de que o mundo não perceba que você é o mais belo anjo já visto em mares e terras. E coisa nunca se desmantela totalmente.