Um tracejo menor que nada
Então você bateu a porta e fez desmoronar tudo em mim. meus planos, sonhos, meus devaneios de qualquer coisa que una amor à felicidade. Você fez ventar um vento amargo e frio e gélido de um adeus mal dado, mal digerido, um adeus que eu mal dei. Esse era o fim. O nosso fim.
Mas não importa. Comecei pelo fim para que essa nossa história tenha logo os laços ruins expostos e escancarados, para que, então, a continuação seja doce, seja de amor. Sei, sei, que insensatez começar algo pelo fim. Mas se o fim é que não agrada, por que não inverter a direção? Começo pela dor, pra que a dor não me recomece. Então vêm as risadas, as fotos, as lembranças, as cartas, vêm os filmes, os domingos, os sorvetes, até as brigas vêm, mas junto delas vêm, também, as reconciliações.
Antes de você bater a porta, as malas estavam feitas. Mal feitas, mas estavam lá, prontas, às pressas, numa ânsia em abandonarem a casa. Antes disso tinha vazio. Nossos silêncios incômodos, nossas brigas estilhaçantes, nossas fugas alheias repletas de derrotas internas e medos de perdas austeras.
Mas antes, bem antes do desencontro de olhares, antes de elucidação desamorosa e entorpecentemente fatigante, antes ressoava MPB, tinha filme francês, tinha sorvete em dia de chuva. Antes tinha ligação no meio da tarde, mensagem inesperada. Antes tinha os olhos suplicantes, os dedos entrelaçados, tinha minha pele roçando na tua, tinha todo o ar que enche o pulmão alheio.
Mas olha, poderia eu passar horas, linhas, cadernos inteiros, me despejando as lembranças boas do que fomos. Poderia eu te dizer que as fotos ficaram de um artístico imensurável. Poderia eu, ainda, dizer que as flores eram de um perfume exuberante, que tudo era encantadoramente sutil, fugaz, torpe, agoniante e sordidamente cantante ao seu lado.
Mas, se tudo isso era tão ascendente, tão gananciosamente amor, porque é que você bateu a porta? Bom, no fim não importa, é de sua presença doce que bordo seus vazios nessa casa. É das flores doces que me recordo. A porta que bate não me despetala. Talvez isso seja só besteira, um quase nada. Um tracejo menor que nada. Mas é assim que quero terminar minhas lembranças: com os melhores odores dos nossos bem-me-quer.