Dia de festa
Por um momento, a letra da canção, já tão automatizada, penetra em seus ouvidos com clareza: "Que reste-t-il de nos amours? Un paysage, un petit village..."
Procura concentrar-se nos pormenores. Vai ser uma verdadeira surpresa. Um presentinho de aniversário. Discreta, trata do que falta. O marido pousa o jornal sobre a mesa e observa seus movimentos.
- Tu estás agitada.
- Eu? Por quê?
- Não sei, nos últimos dias...
Ela o interrompe, passando do tom casual para o cortante:
- Tenho feito o que preciso fazer. Só isso.
- Ana, por que não me tratas bem?
A mulher revolta-se com o tom de lamúria. Difícil suportar por parte de quem costumava ser tão desenvolto.
- Por favor, vamos parar com isso.
- Mas, é a verdade. Ou não é?
Com as duas mãos, ela empurra os cabelos para trás. Como se, com o gesto, ganhasse tempo para responder. Sente um enorme e indefinido cansaço.
- Pedro, logo estarás bom. E, então, vais voltar a ser o Pedro de antes.
- Quem me dera...
A ex-vizinha é a primeira a chegar. Sem desconfiômetro. Sua voz retumba pela casa, distribuindo cumprimentos.
- Faz tempo que não vejo vocês, meu Deus, quanto tempo!
Quando moravam na mesma rua, a três casas de distância, Renata mostrava-se sempre disponível. Divorciada, sem filhos, aparecia freqüentemente para bater um papo. Um dia, encontrou-a na cozinha, preparando qualquer coisa para seu marido.
- Coitado, estava com fome, me ofereci para fritar uns bifes.
A vizinha manejava com entusiasmo a frigideira. Refestelado à mesa, ele vibrava:
- A Renata não acha enjoado fritar bifes.
A outra não se deu conta do olhar arrevesado que lhe foi dirigido. Ou fez que não percebeu. Colocou-a em uma fritura lenta, não tão lenta quando os elogios a sua pessoa começaram a aumentar. Depois que Renata se mudou, as relações ficaram, aparentemente, mais distantes.
Acompanha a convidada até a sala e pede licença para atender a porta. Adriana, a antiga secretária do escritório, aparece com um macacão preto, os cabelos alourados esvoaçando por sobre os ombros. Houve um tempo em que a moça, como auxiliar direta de Pedro, desempenhou um papel significativo em sua vida: servia-o com desvelo, não importando hora nem lugar. Despediu-se, após alguns anos, sem maiores explicações.
Chega a Narinha, uma estudante miúda, dona de um sorriso simpático. Foi quem assumiu o serviço de Adriana. A partir de então, passou a ser a "faz-tudo". Seu marido alegrava-se por ter descoberto alguém tão eficiente, um verdadeiro achado. Um dia, flagrou-o pegando as duas mãos de Narinha, numa situação de estremecido reconhecimento.
E a dentista, não virá? Trata-se de uma mulher fina, que anda habitualmente com terninhos muito bem cortados. Como, durante o dia, nem sempre Pedro dispunha de tempo, ela atendia-o no final do expediente, às vezes na entrada da noite. Mais de uma vez, famintos, foram comer qualquer coisa juntos. Ah! doutora Lúcia...
Batem à porta. A colega de escritório, ao longo de vários anos, estampa um ar de surpresa. Explica-lhe que são os cinqüenta anos dele. Leva-a até o sofá, sabendo que sua presença vai ser bastante apreciada. Ambos tornaram-se grandes amigos. Viajavam juntos, quando necessário. Não foram poucos os serões que fizeram, na tentativa de resolver algum caso mais difícil. A Graça é uma mulher segura, que se distingue pelo seu charme.
Deixa-os conversando. Na cozinha, tudo em ordem. Pede à empregada que se esmere na recepção aos convidados. Afasta-se rápido, para não ouvir a pergunta que vem a caminho. No corredor, pecha com o enfermeiro:
- Hoje ele vai cansar.
Abre a porta e sente um ar fresco no rosto. Sai embalada pela música que toca lá dentro: 'Ciao, amore, ciao."