Onde anda você?

Você cruzou minha vida desde cedo. Flutuou em meu redor, visitou meu viver, transmutou-se, multiplicou-se, trocou nome e feições, mas eu sempre a reconheci, quando estava ao meu lado.

Sua primeira aparição se deu quando eu tinha apenas 6 anos. Apresentou-se uma menina de 5 anos. Chamava-se Iracema. Sempre acompanhada de sua irmã Malvina, que tinha 7 anos, estava ao nosso lado, em brincadeiras infantis. Os nossos olhares não passaram despercebidos pelos que nos rodeavam, irmãos e amigos.

Quando estávamos brincando, nosso sítio preferido era um velho armazém de madeiras no terreno vizinho. Você fingia que não me via, eu fingia que não olhava, e, assim, nossa vida transcorria.

Mas você partiu. Saiu, sem dizer aonde, sem dizer por quê. Saiu.

Saudoso, eu cantarolava partes da composição de Adoniran Barbosa:

“Iracema, meu grande amor foi você”.

...

Você voltou (como voltaria outras vezes mais) a minha vida. Agora com outro nome. Agora, mais velha. Tínhamos 10 anos. Apresentou-se Kátia. Outras feições, outra residência, e o comportamento semelhante: tímida, retraída, porém doce.

Juntos, em companhia de irmãos e amigos, freqüentávamos as matinês dos cinemas Albatroz (aos sábados) e Rivoli (aos domingos).

Junto a você, em sua residência, veio a televisão. Nós, a vizinhança, parávamos para ver um jogo, um programa de auditório... E eu me sentia mais eu junto a você.

Não estivemos muito tempo juntos. Nessa aparição, não me viu muito. Senti que fiquei despercebido.

Novamente você se foi. Sem dizer para onde. Sem dizer por quê. Saiu.

...

Não tardou muito e eis que você voltou, agora com muito mais força. Demonstrou interesse por mim, e eu mais ainda por você. Eu com 13 anos, você com 12. Maria.

Sonhei... Dormindo e acordado. Sonhei longos anos.

Também, à semelhança das aparições anteriores, sempre em brincadeiras, sempre aparecendo em minha casa, em contato com meus irmãos... Sempre bela (uma beleza interior que fazia esquecer qualquer possível pequena imperfeição exterior).

Sempre alegre, simpática, doce. Doce a ponto de despertar interesse também de outras pessoas... Sim, agora já adolescente, já na flor da juventude...

Mas nosso despertar mútuo sei que existiu. Apesar de nunca nos termos revelado.

Eu recebera uma fotografia sua. E a tinha com tanto enlevo, que, não podendo beijá-la, beijava sua foto, antes de deitar, e ia dormir, para sonhar com você.

Nossos espíritos eram tão empáticos, que convivemos na alegria e na tristeza. Na primeira experiência de afastamento definitivo de um ente querido, eu procurei você, e me amparei em seu carinho, sua voz. Ouvi de seus lábios as primeiras palavras, receosa de transmitir uma tristeza, mas firme na noção da realidade.

E essa nossa troca de energia (mental, psíquica, anímica) foi tão forte, que, mesmo voltando outras vezes com heterônimos e até com heterântropos, continuou presente por longo tempo, em dualidade de presença.

...

E assim foi quando se apresentou como Alice. Bem diferente, física, mental e comportamentalmente. Fez-se outra e me seduziu, continuando em minha volta como o era antes (e o foi depois).

Esse heterântropo flutuou por meros meses, e seguiu seu caminho, ainda se mantendo ao meu redor, porém não em sintonia, por mais alguns anos. Tínhamos os mesmos interesses, mas não os mesmos desejos. E você - ela - se foi. Para não mais voltar.

...

Reapareceu com mais força - até - do que jamais se apresentara. Agora você era Moema. A dualidade - nome e heterônimo, Maria e Moema - conviveu por alguns anos, até que houve troca de posições ao meu lado. O heterônimo suplantou o nome e tomou seu lugar.

Ainda convivemos mais algum tempo. E o nome - agora já heterônimo - seguiu seu destino. Mas não em definitivo. Ainda voltaria, a se desdobrar outras vezes em heterântropo.

E você, agora nome, agora Moema, foi a minha força. E eu fui seu esteio. Nosso contato agora carne, agora pele, agora corpo, manteve-se e gerou frutos.

Vivemos os mesmos sonhos, integramos nossas vidas, construímos nosso lar, nossa felicidade.

Não sei se o fogo não foi bem alimentado, se a engrenagem não foi bem lubrificada... Sei que esse ambiente desgastou-se com o tempo. Mas não se desfez.

...

Certo tempo, um seu heterântropo apareceu em minha vida. Zélia. Uma estrela pequena, sem muita graça, longínqua, e dessa estrela eu gostei. A dualidade nome-heterântropo, Moema e Zélia, persistiu na presença e na ausência desta.

Com você heterântropo, eu fui feliz, e a felicidade transbordou em você, agora nome, antes heterônimo. Felicidade tanta, que extravasou e fugiu ao controle.

Este heterântropo, vivendo em outro sistema, a ele se ateve, deixando-me com você, Moema. Mas não me deixou no íntimo. Tem seu lugar reservado, como lugar reservado você tem, em algumas de suas formas, de seus nomes, de seus heterônimos.

E se foi. Mas ficou...

... pra poder sair ao claro

em hora e tempo devidos

e mostrar a todo o mundo

que a renúncia de um amor

pode tornar-se esperança

de um amor inda maior.

...

Transmutou-se, mas não se transformou. Era uma outra pessoa agora a que você encarnou.

Doce a sensação

do primeiro encontro.

Um tufão, uma luz?

Não sei.

Mas que mexeu, mexeu.

De repente, sem esperar,

um olhar, um toque, um encontro...

E o resto? Como dizer?

Mesmo estando você a meu lado, apareceu em mais um heterântropo, Flora. Paixão avassaladora, queimor de mais de 40 graus à sombra, Flora era Vênus, enquanto eu era Júpiter.

Livres para voar,

ou para andar,

correr, amar,

livres e enlaçados,

estamos ao vento,

abrigados do mundo,

tendo o mundo todo para viver,

amando e sendo amados,

mas livres.

Um a orbitar ao redor do outro, mas nossos encontros não foram de fácil aceitação, de fácil resolução.

A Flora eu teria dito, se oportunidade tivesse:

Naquela noite eu te vi partir.

Um beijo simples, apressado,

um até-logo triste,

uma certeza do reencontro

misturada à dúvida

que a separação deixava.

Naquela noite não mais te vi.

...

Foi e voltou, alguns anos depois, travestida de andarilha. Karina. Outro temperamento, outra visão da vida, outra vida.

Outra dupla heterônimo-nome que, por decisão do heterônimo, não se concretizou.

Anima - animal...

espírito puro, angelical,

um corpo lindo, sensual.

Minha mente percorre

os recônditos do meu ser...

não há registro igual

em qualquer tempo ou lugar,

não há ninguém,

não há nada,

sombra,

som...

...

E você, heterônimo, recolheu-se. Retraiu seu sentimento, que eu sabia verdadeiro, porém com outra forma, outra visão.

E se afastou...

...

... e voltou Luciana. Voltou indecisa, inconstante, inconclusa.

O sentimento que me invade, entanto,

é novo, é forte, e toma o corpo inteiro,

eu sei que já não é o amor primeiro,

e sinto como o fosse, e causa espanto.

E assim permaneceu por algum tempo, ensaiou maior aproximação, melhor envolvimento, e, quando resolveu chegar, partiu. Brusca, seca, inexoravelmente.

...

E eu continuo com você.

Você, minha mulher, a mulher que eu escolhi para mim. Nessa sua face, diferente e ao mesmo tempo semelhante às outras faces que me mostrou, prendeu-me na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.

Agora, já maduro, vejo em suas feições, em suas vivências, seu temperamento, todas as outras formas com que você se apresentou a mim.

A forma que lhe entregou o lugar ainda está na esfera, porém invisível, em outra dimensão, quiçá outro mundo...

Talvez ainda pensando em mim... ou não...

Onde anda você?