Humano, demasiado Desumano Pt.I

Quando me dei conta estava fitando minha mão. Jogado a meus pensamentos, pensamentos estes, nem um pouco desejáveis. Ainda fitando aquela mão, comecei, sutilmente, a averiguar o local, a situação e o que estava prestes a fazer. Estava mais escuro do eu me recordava. Talvez tivesse perdido a noção do tempo, ainda era dia quando decidi que iria fazer. Vou fazer. Sem sombras de dúvidas devo fazer, afinal, é a solução. Solução egoísta, mas eficiente. E, como desculpa, posso usar de minha condição de existência. Sou o que sou, portanto, sou egoísta, de minha estirpe somos todos egoístas. Estava confuso. Continuo confuso.

Senti o medo manifestando-se fisicamente por todo meu corpo. Finas, rápidas, e importunas gotas de suor desciam, paulatinamente, pelos ângulos retos de minhas sobrancelhas e seguiam, precisamente, quase que linearmente ao longo de minhas bochechas, encontrando repouso logo abaixo meu queixo. Podia sentir meus batimentos cardíacos tangendo minha laringe. Não bastasse isso, eu estava trêmulo. Mas, devo fazer o que é correto. Estava tomando uma decisão por conta própria, mas pelo bem de alguns poucos. Tenho certeza que eles, se compreendessem, apoiar-me-iam.

Tudo se movia mais vagarosamente. Podia sentir ínfimas partículas invadindo minha prisão terrena. A cada suspiro eu as sentia com maior convicção. Ainda observando minha mão, perguntei-me se alguém superior nos observara todo esse tempo. Se ele, ou ela, estaria contente com minha atuação no universo ou com a minha saída deste? Nunca fui religioso, nunca tive aquilo que chamam de “fé”. Não seria agora a hora para desmoronar ante esse conceito imensamente abstrato. Mas senti-me conformado, até mais feliz. Só por cogitar a hipótese da existência de um ser superior. Se houvesse, se houve todo esse tempo, tenho certeza de que ele – ou ela- me odeia. E que a recíproca é verdadeira. Se ele, ou ela, existe, porque se ausentou por todo esse tempo - 57 anos. Foram 57 anos de desgosto, decepção e ódio direcionado a todos, direcionado à minha própria raça. Evidente que, como ser humano é de minha natureza sentir, incisivamente, esse tal ódio. Você leitor pergunta-se o porquê. Não preciso explicar. Olhe ao redor, veja o que o Humano, demasiado humano fez e continua a fazer com aquilo que chama de lar. É tamanha falta de autopreservação que logo teremos de procurar outro planeta para morar, precisaremos procurar outro ser parar sermos. Envergonho-me de ser homem. É desumano ser humano. E, desta forma, a humanidade, como um organismo – ou melhor, câncer -também se envergonha. Do contrário, não teria criado regras, dogmas, costumes e caminhos baseados num ser onipresente e onipotente. Tal hipocrisia, somada ao medo, faz com que o ser humano recorra àquilo que é metafísico afim consola-lo e perdoa-lo pelos atos desumanos que regram sua vida. Desumano. Tal palavra, acredito eu, foi e continua sendo empregada de forma equivocada, tal forma, que termina inverter seu valor semântico. Etimologicamente, o prefixo “des” indica negação, somado à palavra “humano”. Ela conota um ato caracterizado com ruim, nocivo perante nossa sociedade. Historicamente, sempre empregamos tal palavra para descrever algo que é feito conosco, ou seja, de humano para humano.

Analisemos a postura do ser humano – nós – perante à Gaia, ou perante aos nossos conterrâneos, as outras espécies e raças desprovidas da mesma capacidade intelectual que nós possuímos. Isso é desumano. Desumano é manipular, engolir o próximo por algumas cédulas a mais. Desumano é ser humano. Só de filosofar sobre a existência que levamos enoja-me a postura que tomamos. Criamos uma moeda de troca, cujo seu valor é simbólico. E, por este valor simbólico, transformamos nosso mundo nos nove círculos do inferno de Dante Alighieri. Ser humano é não ser aquilo que idealizamos como o ser humano.

Tive a felicidade infeliz da compartilhar da minha existência com três outras criaturas. O milagre da reprodução. Gaia, talvez, não considere um milagre, a reprodução do câncer que parasita seu corpo. Voltemos. Lindas criaturas, confesso. Penso que deva contar um pouco dessa tal existência de que tanto falo.

Foi em uma tarde de verão, precisamente às 16 horas e 23 minutos, que me deram o privilégio da vida. Não me recordo do acontecido, obviamente. Setembro, dia 11. Há 57 anos. Tive uma infância feliz, afinal, felizes são aqueles que não sabem no que estão metidos. A ignorância é uma benção, não é o que dizem? Mas, ainda jovem inferi que não pertencia à mesma espécie daqueles que me rodeavam. Tive ótimos pais.

Meu pai, um simples produtor de legumes, um homem bom, mas de muitas certezas e poucos questionamentos. Impenetrável, uma qualidade boa para uma rocha – talvez - mas não para um pai, ainda que um bom pai. Não me recordo de grandes demonstrações de afeto vindas dele.

Minha mãe. Talvez “ingênua” seja a palavra que a defina. Até hoje não sei porque se casou com meu pai. Mulher arrojada. Sem medos ou receios, tinha dúvidas demais e certezas de menos. O oposto extremo de meu pai. Inteligente, bela e magistral.

É o que me recordo deles, apesar das dificuldades da vida do campo, da cultura de hortaliças, quase que de subsistência, não tenho queixas sobre ambos. O que faltava em um o outro supria, emocional e fisicamente. Qualquer carinho que me fosse negado, quase que involuntariamente, por meu pai me era proporcionado em dobro por minha mãe. Mas, eu não conseguia ama-los. De tempos em tempos me pergunto se ainda consigo amar. Ou se consegui? Talvez- há anos - me faço a pergunta errada. A indagação correta seria: Consigo eu sentir? Qualquer coisa que seja? Qualquer tipo de emoção, sentimento, sensação ou impressão? Não obtive minhas repostas, por ora.

Agora adolescente, minhas convicções eram assíduas e muito bem formuladas. Estas ganharam corpo e conteúdo ao passar dos anos. Não podia amar aqueles que me trouxeram ao mundo, era inaceitável. Se os dois amassem, de fato, seu filho, nunca sequer cogitariam a hipótese de gerá-lo. Mas, estava feito. Tentei durante anos ser o melhor que pude. Saí daquela imensa pradaria ingrata, mudei para a cidade. Agora, cursando Direito, achei um propósito à minha indesejada existência. Julgar. Era tão bom, possuir o poder de julgar, condenar e absolver tudo e a todos. Modéstia parte, eu era talentoso, e muito. Sem grandes delongas me formei e quando me dei conta, era juiz estadual. Alguns fios brancos se acomodaram sobre minha cabeça. Condenei muitos daqueles que considerei podres, afinal maçãs podres apodrecem as outras. Mas, sob meu ponto de vista, estas maçãs devem ser desintegradas e não afastadas do cesto. Durante anos lutei, discursei a favor da pena de morte. Nunca consegui implantá-la. Percebi então o que devia ser feito.

Subitamente, então, acalmei minhas cóleras. Afastei-me do cargo, montei meu próprio negócio, fiz o mesmo que metade do país faz. Quebrei, reergui-me e novamente perdi tudo. Foi nessa data que decidi voltar às minhas origens. Voltei à fazenda. Encontrei somente minha mãe e o túmulo de meu pai. Apesar de não ama-los, meu senso de justiça sempre fora aguçado e, sob minhas concepções, o que fizeram com meu pai não era certo. Minhas cóleras tomaram forma outra vez. Meu pai fora assassinado por um viciado, que levou dele um isqueiro, seu chaveiro e dez reais que ele carregava no bolso. Foram 26 facadas, por dois itens e dez reais. Refleti por alguns meses – ainda sem sentir nada- e mais meses, mas algum tipo de conclusão daquela história me parecia inalcançável.

Revoltei-me com o mundo, apesar de não ama-lo, laços foram criados. Ele me ensinara tudo o que me fizera um bom homem – creio eu. Fiquei alguns poucos anos ao lado de minha mãe, consolando-a e sustentando-a. Então, aquilo que você leitor chama de Deus, ou destino, atropelou-a com um caminhão de ferragens sobrecarregado. Médicos disseram-me que não fora o para-choque daquela Mercedes-Benz do século passado que levara minha mãe. E sim as ferragens em excesso que ela carregava. Devido à frenagem, as toneladas de aço, que sambavam sobre a cabine, projetaram-se para frente do caminhão, esmagando minha mãe. Não senti nada, senão ódio. Mas senti. Pela primeira vez senti.

Duas tragédias. Tentei então procurar Deus, afinal tinha contas a acertar com ele. Se o encontrasse iria amaldiçoa-lo, lançaria minha cólera sobre ele. Tinha uma fazenda em meu nome. Quando a vendi, redeu-me uns bons trocados. Uma boa quantia em dinheiro. Provavelmente ainda tenho resquícios daqueles espécimes. Usei quase tudo em viagens. Viajei o globo em busca de sinais, em busca de direções, em busca de algo. Voltei, quando o dinheiro era pouco e o conhecimento muito. Assentei-me novamente na vida. Imóvel. Estático.

Dei-me a chance de relacionar-me com outros seres de minha espécie. Descobri o que era sexo. Nada mais do que dois serem buscando prazer emocional por meio de atos completamente mundanos. Conheci inúmeras fêmeas, afinal, chamavam-me de “boa pinta”, isso me rendeu horas de diversão e suor. Conheci mais fêmeas. Decidi então brincar com meu Deus interior. Atraia, como uma viúva negra atrai o macho de sua espécie para o acasalamento e depois o devora, de forma, digamos “desumana”. Durante meses lia casos de estupro e assassinato, a sangue frio, e me orgulhava de minhas obras. Perguntava-me se era assim que Deus – caso existisse- se sentia ao tomar a vida daqueles pequenos insetos que se esforçavam para mantê-la. Levei tudo com muita seriedade, com discrição desmedida. Para não ser pego. Nunca chegaram sequer duvidar, sequer suspeitar de mim. Afinal, eu era somente mais um juiz aposentado,um homem desgostoso perdido no anonimato. Essas atribuições me garantiam segurança no hobby que desenvolvera.

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Hugo Aruom
Enviado por Hugo Aruom em 30/10/2013
Código do texto: T4548868
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