Especulações acerca dos sonhos de Pietra
Sonha Pietra. Com que sonha? Acaso não tem tudo?
De fato tem: riso, melanina, molejo, um exército todo a seu dispor. Até um cão tem. Pouco importa, pode sonhar. É pássaro livre. Aos especuladores do ócio é que é dada a ingrata missão de decifrar. Decifrar, decifrar, decifrar. E, todavia, é empreendimento totalmente árido, nada se revela. Nada se decodifica desse mundo de linguagens ao avesso: as deduções todas redundam no mesmo impasse. Semânticas que não se decifram. Enquanto isso, enfartam os velhos, desesperam-se os moços, recolhem flores os românticos, suicidam-se a razões alucinadas. Tudo para encher os olhos de uma Pietra que sequer se espanta, que sequer se revolta.
Talvez sonhe com algum mundo secreto, só seu, inteiramente imaginário.
No escuro propõe algum público entorpecido: “comovam-se estudiosos do ocidente; alvorocem-se prestidigitadores da extrema Ásia; essa menina sonha!”. E, de novo, retoma-se a silenciosa observação. Em coro mudo esboçam-se desejos vários, toda uma humanidade ratifica: armem barricadas, proclamem uma greve geral das cidades, mas cheguem a ver, Pietra está sonhando. Mas nenhuma alma encoraja-se mesmo a perturbar o semblante de Pietra. O corpo a dar voltas em si. O desenho dos lençóis a arranjar-se em formas sublimes. O povo olha-se absorto. Ninguém ousa tocá-la. As beatas bradam contra o escândalo que é Pietra a sonhar sexualidades e afetos. Há quem proponha uma tese, há quem escreva uma enciclopédia. Todas as faces pasmas. É um espécime a sonhar em pleno século.
Munida aparentemente dalgum artifício oculto, segue a sonhar pela vida afora. Talvez sonhe em preto-e-branco, talvez em inglês, talvez com borboletas, talvez com amantes couraçados. O certo é que sonha sem cessar, sem cansar. Pietra é um motor. Somente pela manhã é que parece mais humana. Abre os olhos, e torna a fechá-los. Estica-se inteira, e morde o lábio até quase sangrar. Lúcida, Pietra percebe que a vida também é um pequeno milagre. Por isso sorri.