A musa fracassada
Estou sem minha mulher. Melancolicamente sem minha mulher. Estou sozinho: meço-me com metódico desinteresse diante do espelho. Provisoriamente permaneço humano. Ainda não me transmutei em sinistra mitologia. Ao som apagado de minha respiração, meço-me: diminuo e cresço. Abandono-me diante do meu coquetel de nada. Estou sozinho. Minha mulher é uma multidão: sou rústico, enquanto ela jaz, toda adaptada à sua época. Sou um passo atrás, ela é um passo de dança. Eu sou uma pedra, ela é uma mão. Sou a boca, ela é o sal. Sou míope, ela é tão bonita. É a menina mais promissora. É feminista, é indigenista, é latino-americana. Um quadril, um braço, um olho, uma orelha. Ela é futurista, ela é futurista.
Sou precário: apresento-lhe a mesmíssima rima branca. Mas ela é extática: traz-me os lábios vermelhos como se fosse figura de fábula. Eu definho, ela desfila. Ensaio pequenas rebeliões: deixo de ser, volto a ser, fecho-me e desfecho-me. Finjo-me refeito, finjo-me refém. Refaço-me, pulverizo-me. Mais tarde, outra vez: apenas sou. Ela, exibicionista: soul.
Meu ofício é insustentável, é estéril: nada comove esta dama de titânico rigor, de malévolo sorriso; ela tem ideologias, tem enigmas insondáveis. E meu dever diante dela mantém-se infecundo: pois os relances plásticos não remontam, por assim dizer, outra mulher mais analisável. Tal qual a matéria que resiste a ser matéria. À injeção de luz, toda se desmancha: é uma manteiga derretida. É um sistema. É uma tese. Uma antítese.