Estante de Instantes
Roberto chegou e olhou a estátua reluzente sobre o altar, banhada a ouro e impulsionada à vida pelas lágrimas dos fiéis. Sentiu-se mal, pequeno, submisso às forças que o acometeram no momento em que pisou naquele chão sagrado, enaltecido pela crença fidedigna dos tão ou mais inferiores que ele. Rezou; e rezou forte. Rezou para esquecer que um dia deixou de rezar. Que pecado! Que homem merece pisar no chão do Senhor, se não para agradecê-Lo por estar ali; vivendo, respirando, usando-se dos produtos divinos da terra! Pelo menos, foi o que fê-lo acreditar sua mãe. Lembrou-se que deixara o garfo cair, após o sempre presente e atroz sermão materno, que o lembrara de lavar as mãos antes de comer para sujá-las novamente em oração pré-ceia. Tinha cerca de 12 anos, mas a lembrança era eviterna. Tinha que ser, pois assim cumpriria sua função de sermão.
Ao fim do ritual, os sacolinhas começaram a recolher o dinheiro dos generosos fiéis, que, de bom grado, ajudavam a manter os voluntários que trabalhavam ali. Muitos não haviam nem mesmo terminado o Ensino Médio. Roberto não hesitou em lhes negar a oferenda, afirmando que o dinheiro seria desviado para manter os “luxos” do padre e de seus “comparsas”. Sua volta à igreja havia sido uma parada inédita em seu itinerário cotidiano. Após se levantar, dirigir-se à porta de saída e rasgar o panfleto de uma instituição de caridade que lhe foi dado por uma senhora idosa, sem a preocupação de ser discreto, Roberto sentiu certo vazio. Mas como? Acabara de banhar seu lado espiritual, renascendo das cinzas como uma fênix retraída em suas penas vermelhas... Ou era ele mesmo as cinzas? Orações e repetições de salmos não o completaram. A solução, nesse caso, seria algo mais... palpável. Saiu, gesticulou um último sinal da cruz de maneira forçada pela praxe e caminhou por um parque que se estendia da capela a uma cafeteria.
Andou, olhou para uma árvore esbelta e mansa; andou, olhou para o menino da bola cinza e da alma colorida; andou, chutou uma pobre folha amarelada, que preferiu ser folha morta voadora a ser folha viva presa; andou, fingiu coçar a ponta do nariz quando uma bela jovem lançou-lhe um olhar de interesse; andou, até perceber que não havia percorrido mais que dez metros.
Pediu um café forte, puro, acompanhado de uma fatia de pão integral sem manteiga. O de sempre, ora, para que mudar o que já se sabe que é bom? O bom deixa de ser bom por uma questão de opinião, de amadurecimento? Fica... menos bom? Fica enjoado, ultrapassado? Será que Roberto, nos confins das ideologias, não achara que tudo aquilo que se considera bom pode ser um ruim disfarçado; um prazer apaixonado mas vazio de personalidade? Talvez, mas só se pensa nessas coisas após a primeira mordida, e às vezes nem se pensa. Pagou à garçonete, que cochichou palavras de ódio consigo mesma quando o sujeitinho solitário da mesa sete lhe negou os 10%. Roberto não era de gastar riquezas com coisas desnecessárias.
Vagueando novamente pelo quarteirão, lembrou-se do clássico que almejava adquirir da livraria. Há exatamente uma semana, havia passado por lá, fitando lentamente a vitrine do recinto, como uma criança que remexe os bolsos em busca de trocados para comprar o boneco que viu à mostra. “Odisseia”, epopeia de autoria atribuída a Homero, era o pote de ouro reluzente no fim do arco-íris sobre o qual caminhou para chegar lá. A obra estava ao lado de “Perto do Coração Selvagem”, de Clarice Lispector, autora a qual Roberto tachara de “personalidade de adolescente tediosa do mundo”, acusando-a de “não saber o que quer, nem se de fato quer algo de alguma coisa”. Entrou na livraria e, antes mesmo que o atendente pudesse cumprimentá-lo com a cordialidade de um bom servo, Roberto foi direto ao ponto.
— Quero aquele livro.
— Qual livro, senhor?
— Aquele ali, não vês? Está quase que isolado dos outros.
— É o laranja ou o preto com uma maçã?
— O laranja, para onde estou apontando! Achas que tenho cara de adolescente para ler um livro daquele?
E, antes que o atendente pudesse dizer algo:
— Não tens como ser rápido? Tenho outro lugar para ir em poucos minutos!
O moço, traçando na mente e no ódio o perfil de Roberto, cansou-se de insistir em algum pífio traço de humanidade para lidar com aquele homem.
— Já vou pegá-lo. Espere naquele balcão para pagar.
Já era tarde. A missa foi uma novidade para os domingos de Roberto, que procurara uma explicação para o vazio que vinha se alastrando em sua alma nos últimos tempos. Ele não estava acostumado a vivenciar esse afazer em sua agenda, logo, perdeu a noção da hora em que deveria estar em casa. Pegou um ônibus por falta de dinheiro para um táxi. Havia gasto sua cota diária de cédulas que carrega consigo. Chegou à sua casa. Grande; por fora branca, com uma porta de madeira e uma maçaneta tingida a ouro envelhecida. Janelas também simples. Vida também simples. Por dentro, havia dois quadros. Em toda a casa. Roberto odiava plantas: eram mais um fardo para carregar na mente, regado a preocupações desnecessárias com pequenas coisinhas que nem vale a pena olhar por muito tempo, pois o tempo, em si, já é a pena.
Roberto ouviu um som. Som esquisito aquele; métrico, compassado, perturbador. Não lhe era comum e não fazia parte dos sons que se habituara a escutar. Ao entrar no escritório, inóspito cômodo de sua casa, percebeu que o som vinha de um telefone em cima de sua escrivaninha. Era sua mãe, num tom ríspido, dolorido, apressado.
— Roberto... ah... meu... meu Deus do céu... ah! Rober... venha aqui agora, Roberto!
— Mãe, o que houve?
— S... s... se... seu p... seu pai morreu!
Foi preciso apenas um segundo de esforço na fala de sua mãe desolada para destruir todos os de Roberto. Todos os compassos, os planejamentos, as rotinas, a dedicação à monotonia... Parecia que a vida só havia existido para ser um mal a si mesma. Ouvia constantes impactos no gancho do telefone, pois sua mãe derrubava-o incessantemente, sem ter nem mesmo forças para concluir a ligação.
— Como foi isso?
— Teve uma p... pa... parada cardíaca v... voltando do tra... do trabalho! Cadê você, Roberto?! Eu não aguento ficar sozinha! — Tentou engolir os soluços para que fluísse a fala.
— Estou em casa. Amanhã à tarde passo aí para acertarmos o enterro. — Desligou.
Roberto tomou um tempo. Relaxou, olhou para o céu. Perambulou pela casa e lembrou que precisava guardar o livro recém-comprado na estante da sala. Colocou-o na seção entre “N” e “P”, disposta em ordem alfabética. Mediu-o com a mão, assegurou que estava alinhado com os outros livros e que uma régua pudesse ser colocada perfeitamente sem que um livro sequer estivesse mais atrás ou mais à frente que os outros. Pegou seu bloco de notas, disposto na mesa de jantar. Riscou “Ir à missa”. Escreveu “Segunda. Mãe. Após o almoço”. Dobrou a roupa que usou durante o dia, colocou a de dormir, bebeu um copo d’água e se ininhou nas cobertas.
— Devia ter pago aqueles 10%.
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Roberto chegou e olhou a estátua reluzente sobre o altar, banhada a ouro e impulsionada à vida pelas lágrimas dos fiéis. Sentiu-se mal, pequeno, submisso às forças que o acometeram no momento em que pisou naquele chão sagrado, enaltecido pela crença fidedigna dos tão ou mais inferiores que ele. Rezou; e rezou forte. Rezou para esquecer que um dia deixou de rezar. Que pecado! Que homem merece pisar no chão do Senhor, se não para agradecê-Lo por estar ali; vivendo, respirando, usando-se dos produtos divinos da terra! Pelo menos, foi o que fê-lo acreditar sua mãe. Lembrou-se que deixara o garfo cair, após o sempre presente e atroz sermão materno, que o lembrara de lavar as mãos antes de comer para sujá-las novamente em oração pré-ceia. Tinha cerca de 12 anos, mas a lembrança era eviterna. Tinha que ser, pois assim cumpriria sua função de sermão.
Ao fim do ritual, os sacolinhas começaram a recolher o dinheiro dos generosos fiéis, que, de bom grado, ajudavam a manter os voluntários que trabalhavam ali. Muitos não haviam nem mesmo terminado o Ensino Médio. Roberto não hesitou em lhes negar a oferenda, afirmando que o dinheiro seria desviado para manter os “luxos” do padre e de seus “comparsas”. Sua volta à igreja havia sido uma parada inédita em seu itinerário cotidiano. Após se levantar, dirigir-se à porta de saída e rasgar o panfleto de uma instituição de caridade que lhe foi dado por uma senhora idosa, sem a preocupação de ser discreto, Roberto sentiu certo vazio. Mas como? Acabara de banhar seu lado espiritual, renascendo das cinzas como uma fênix retraída em suas penas vermelhas... Ou era ele mesmo as cinzas? Orações e repetições de salmos não o completaram. A solução, nesse caso, seria algo mais... palpável. Saiu, gesticulou um último sinal da cruz de maneira forçada pela praxe e caminhou por um parque que se estendia da capela a uma cafeteria.
Andou, olhou para uma árvore esbelta e mansa; andou, olhou para o menino da bola cinza e da alma colorida; andou, chutou uma pobre folha amarelada, que preferiu ser folha morta voadora a ser folha viva presa; andou, fingiu coçar a ponta do nariz quando uma bela jovem lançou-lhe um olhar de interesse; andou, até perceber que não havia percorrido mais que dez metros.
Pediu um café forte, puro, acompanhado de uma fatia de pão integral sem manteiga. O de sempre, ora, para que mudar o que já se sabe que é bom? O bom deixa de ser bom por uma questão de opinião, de amadurecimento? Fica... menos bom? Fica enjoado, ultrapassado? Será que Roberto, nos confins das ideologias, não achara que tudo aquilo que se considera bom pode ser um ruim disfarçado; um prazer apaixonado mas vazio de personalidade? Talvez, mas só se pensa nessas coisas após a primeira mordida, e às vezes nem se pensa. Pagou à garçonete, que cochichou palavras de ódio consigo mesma quando o sujeitinho solitário da mesa sete lhe negou os 10%. Roberto não era de gastar riquezas com coisas desnecessárias.
Vagueando novamente pelo quarteirão, lembrou-se do clássico que almejava adquirir da livraria. Há exatamente uma semana, havia passado por lá, fitando lentamente a vitrine do recinto, como uma criança que remexe os bolsos em busca de trocados para comprar o boneco que viu à mostra. “Odisseia”, epopeia de autoria atribuída a Homero, era o pote de ouro reluzente no fim do arco-íris sobre o qual caminhou para chegar lá. A obra estava ao lado de “Perto do Coração Selvagem”, de Clarice Lispector, autora a qual Roberto tachara de “personalidade de adolescente tediosa do mundo”, acusando-a de “não saber o que quer, nem se de fato quer algo de alguma coisa”. Entrou na livraria e, antes mesmo que o atendente pudesse cumprimentá-lo com a cordialidade de um bom servo, Roberto foi direto ao ponto.
— Quero aquele livro.
— Qual livro, senhor?
— Aquele ali, não vês? Está quase que isolado dos outros.
— É o laranja ou o preto com uma maçã?
— O laranja, para onde estou apontando! Achas que tenho cara de adolescente para ler um livro daquele?
E, antes que o atendente pudesse dizer algo:
— Não tens como ser rápido? Tenho outro lugar para ir em poucos minutos!
O moço, traçando na mente e no ódio o perfil de Roberto, cansou-se de insistir em algum pífio traço de humanidade para lidar com aquele homem.
— Já vou pegá-lo. Espere naquele balcão para pagar.
Já era tarde. A missa foi uma novidade para os domingos de Roberto, que procurara uma explicação para o vazio que vinha se alastrando em sua alma nos últimos tempos. Ele não estava acostumado a vivenciar esse afazer em sua agenda, logo, perdeu a noção da hora em que deveria estar em casa. Pegou um ônibus por falta de dinheiro para um táxi. Havia gasto sua cota diária de cédulas que carrega consigo. Chegou à sua casa. Grande; por fora branca, com uma porta de madeira e uma maçaneta tingida a ouro envelhecida. Janelas também simples. Vida também simples. Por dentro, havia dois quadros. Em toda a casa. Roberto odiava plantas: eram mais um fardo para carregar na mente, regado a preocupações desnecessárias com pequenas coisinhas que nem vale a pena olhar por muito tempo, pois o tempo, em si, já é a pena.
Roberto ouviu um som. Som esquisito aquele; métrico, compassado, perturbador. Não lhe era comum e não fazia parte dos sons que se habituara a escutar. Ao entrar no escritório, inóspito cômodo de sua casa, percebeu que o som vinha de um telefone em cima de sua escrivaninha. Era sua mãe, num tom ríspido, dolorido, apressado.
— Roberto... ah... meu... meu Deus do céu... ah! Rober... venha aqui agora, Roberto!
— Mãe, o que houve?
— S... s... se... seu p... seu pai morreu!
Foi preciso apenas um segundo de esforço na fala de sua mãe desolada para destruir todos os de Roberto. Todos os compassos, os planejamentos, as rotinas, a dedicação à monotonia... Parecia que a vida só havia existido para ser um mal a si mesma. Ouvia constantes impactos no gancho do telefone, pois sua mãe derrubava-o incessantemente, sem ter nem mesmo forças para concluir a ligação.
— Como foi isso?
— Teve uma p... pa... parada cardíaca v... voltando do tra... do trabalho! Cadê você, Roberto?! Eu não aguento ficar sozinha! — Tentou engolir os soluços para que fluísse a fala.
— Estou em casa. Amanhã à tarde passo aí para acertarmos o enterro. — Desligou.
Roberto tomou um tempo. Relaxou, olhou para o céu. Perambulou pela casa e lembrou que precisava guardar o livro recém-comprado na estante da sala. Colocou-o na seção entre “N” e “P”, disposta em ordem alfabética. Mediu-o com a mão, assegurou que estava alinhado com os outros livros e que uma régua pudesse ser colocada perfeitamente sem que um livro sequer estivesse mais atrás ou mais à frente que os outros. Pegou seu bloco de notas, disposto na mesa de jantar. Riscou “Ir à missa”. Escreveu “Segunda. Mãe. Após o almoço”. Dobrou a roupa que usou durante o dia, colocou a de dormir, bebeu um copo d’água e se ininhou nas cobertas.
— Devia ter pago aqueles 10%.
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