Rádio
O que foi feito do rádio que acompanhou as curvas, quedas e pulos de minha infância não sei dizer. Foi posto no conserto pela minha mãe, e lá abandonado, o mesmo rádio que, em adolescente, letárgico eu ligava e deitava-me encolhido no sofá para ouvir meus programas, ouvir prestando muitíssima atenção às coisas que eu não fazia. Eu já, então, sabia do mundo e sentia o vazio vindo depois de saber como os outros se alegravam e do que se ocupavam em fazer.
A paixão desenfreada começou ao ver o amor compassivo dado ao rádio de pilha da casa de uma vizinha, onde vivi em estardalhaço minha infância, que só muito depois fui descobrir riqueza - porque o doce da infância só adoça a boca adulta. O rádio retangular, cinza e negro, tinha uma alça e era alimentado por baterias grossas, daquelas que só se podia comprar mensalmente. Por isso, eles precisavam economizar: era comumente desligado na hora dos programas policiais do meio-dia ou quando os afazeres tomavam importância e o rádio era desprezado. Ele era do avô da família, o velho sozinho que bebia muitíssimo e compunha músicas mundanas, e que nos punha com hostilidade de velho ébrio para fora, ameaçando-nos de morte com uma espingarda. Eu temia, mas me arriscava, era aquilo ou ficar só e entregue a mim, criança à beira da loucura. Meu amor pelo rádio que ficava sob a mesa, o pano rendado sob o rádio, o amor era grande; encostado à parede, abaixo do tablado, era um armário de duas portas que fazia um barulho duro e serelepe. Eu sempre amei o que é pobre como eu, o que é aos poucos e de amor delicado.
Nós ouvíamos calados o tique-taque do tempo dado para responder à pergunta que valeria um prêmio; sabíamos de cor o número ritmado e cantado; nem sempre prestávamos atenção à receita que era dada. Era de manhã, clara e tépida, e a alegria de viver assaltava-nos. O nome do apresentador do nosso programa matutino jingava louco e lento em nossas mentes.
Nosso sonho era ligar.
Depois de muitos planos, de eu me preparar para o que poderia vir, tramamos um negócio simplório, mas, para nós, clandestinos, de um perigo digno de desespero. Eu pegaria o telefone de mamãe. Minha cúmplice esperava-me atrás da pilha de blocos. Meu coração manteve-se gelado o tempo inteiro: meu crime era a felicidade, e disfarçadamente eu guardava-a, mesmo sabendo que pagaria com cipó no lombo. Eu realmente achei que não fui visto. Transpus a cerca com os nervos bailando. Escondemo-nos e tentamos atingir a glória. A coitada suando, os nervos bambos, a voz entrecortada. Criminosos.
– Toma, fala.
Em vão. Éramos apenas os sacrificados que se entregavam ao perigo de viver em manhãs ensolaradas, catando com o instinto de claridade o pouco: as galinhas vivendo, e se soubessem que era felicidade, não haveria ninho escondido, não haveria ovo.
Não aceitariam nossa pobre ligação a cobrar.
Minha amizade com aquela família era, então, ilícita. Fui denunciado pela minha avó. Repreensões. Repreensões truculentas.
Nós tínhamos telefone em casa. Durante um longo e desesperado mês, eu fiz o que devia ser feito: pois não só liguei assiduamente todas as manhãs como todas as tardes, mesmo que o programa sem atrativos desse horário não me interessasse: eu entrara, com a conformação de quem conhecia o final da linha, em um vício sem gosto. Por vezes perdia a coragem de falar com quem tanto ouvia, o coração enlouquecido, a voz trêmula: e, às vezes, corria à casa vizinha para saber como me saí, depois de criar calo ao dedo e queimar a orelha até chegar a minha hora.
A derradeira vez que liguei ganhei um prêmio que nunca fui buscar: o mel eu já havia com ardor sugado. O tique-taque mal começara, e eu tinha que responder logo, porque eu sabia a resposta, do tal do relógio de pulso. E, sim, eu a vomitei prematuramente, mesmo; escorrera assustada e úmida dos saltos e lampejos de meu peito. Sabia que ganharia e que seria uma despedida, como no fundo sabia que tinha de desligar o rádio porque o mundo se abriria: eu crescia ignorante e faminto, em busca.
– Santos Dumont.
– Como sabe?
– Vi num livro.
A conta ocupara duas páginas com um só número telefônico, a conta que eu esperava vir jamais: da fumaça escura do medo eu tirava o delírio da espera da execução, uma esperança que mal e muito mal me resguardava, sim, a ave de rapina viria: e se fosse de graça?minha mão tremia sobre as teclas dos números; apnéico; fingia acreditar em mim e dava curso, com um prazer doloroso, à infração. O trem parara. E eu fui jogado à parede; as duas folhas se pedindo explicações que eu não teria forças para dar, e apanhei sem ódio. Esperara cada dia mais sufocado aquela hora sublime: alegria com dor se paga.
Depois foi a vez de, já numa idade difícil e sem saber ser feliz porque a infância me abandonara, depois foi a vez de ouvir rádio no escuro. Quando a casa dormia, eu reinava silencioso e de movimentos duros na escuridão de uma casa na madrugada. Sentado ao chão, que, de frio, era preciso eu sentar numa almofada; escutando com satisfação o que era próprio de minha idade obumbrada, música de gente revoltada; apresentadores engraçados porque se exprimiam da maneira mais atual, com a gíria mais atual – que eu aprendia, mesmo envergonhado de usar uma coisa dessas na roça.
Nas férias ou nos feriados, acordava mais cedo do que era possível nesses dias para escutar como era a vida íntima das pessoas da cidade grande. Eu de braços cruzados do frio ao acordar, sem ousar abrir os olhos, o corpo protegendo-se de si mesmo: eu só ouvia. E como era sem vida o que ouvia. Triste como é a vida aproveitada como acham que deveria: ocupada com o outro. De repente, ouvir rádio era cair no vazio do mundo. E eu já buscava, angustiado, a substância pluripotente: eu já lia até levantar da cama morto de fome.
Nenhuma manhã transbordou tanta luz quanto aquelas de radinho ligado no fundo da casa a poucos pulos da minha.