Carta aos senhores

A totalidade dos fatos expostos em sua exatidão nesta carta que vos redijo têm exclusivamente o objetivo de dar-vos a conhecer as razões precisas e únicas que me impeliram a decidir pelos caminhos que decidi e a agir como agi. Não penseis que o faço para justificar-me do que vós dizeis serem meus imperdoáveis erros, das minhas cruéis atrocidades, porque tudo o que se sucedeu foi tão-somente o efeito irrevogável de causas que se estendiam muito além do alcance de minhas debilitadas faculdades, nem para inspirar-vos qualquer compaixão, uma vez que pelos rumos que as coisas tomaram, asseguro-vos que já me é de todo inútil. Haverá aqueles, certamente, que afirmarão em bom tom, atrás dos seus bigodes e de sua ostentação, que todo o ocorrido redundou da minha fraqueza de caráter, da minha corrupção moral, do meu gênio perverso, e que eu poderia ter feito outras escolhas. Mas o que sabem estes que nunca viveram a plenitude da existência humana, desconhecendo seus ângulos sombrios, doentios, e que assim só entreveem alguns poucos e limitados fragmentos de nossa alma? Que enxergam apenas sua superfície, nunca sendo audazes o suficiente para mergulhar sua cabeça nesse rio vasto, negro e profundo que somos nós?

Antecipadamente, já me desculpo convosco pelas eventuais obscuridades e incoerências com que talvez vos deparem nas linhas que se seguem, mas afianço-vos que foi o resultado o melhor a que minhas condições atuais me permitiram chegar. Por fim, se me perguntardes se me arrependo, se refluiria as tristes e dolorosas areias dessa ampulheta, se faria as coisas doutro modo – digo que não sei.

*

Logo após o meu nascimento, minha mãe, que padecia de uma grave tísica, faleceu. Entre os estertores, suores e grunhidos de sua agonia final, contudo, encontrou forças para dar-me um nome – Alva. Como ela não possuía qualquer família a quem delegasse os meus cuidados, fui imediatamente posta em uma carroça e levada a uma paróquia de uma cidade vizinha. Lá vivi até os meus sete anos, período em que tive relativa tranquilidade, tendo sido sempre bem tratada pelas atenciosas freiras, que cuidaram de dar-me uma instrução ao menos fundamental. Havia, no entorno de nossas habitações, vários jardins abarrotados de flores das mais variadas cores e perfumes, e me era um deleite caminhar por eles com os pés descalços, remexendo a terra úmida. Possuía algumas amigas também, cujo destino gostaria de saber quais caminhos seguiu, se melhores ou piores que o meu.

Certo dia, nas vésperas do Natal, todos entusiasmados com os preparativos para a nossa tão aguardada Ceia anual, passou por nossa paróquia um casal, um homem e uma mulher, que se encontravam de viagem às regiões vizinhas. Tão logo a mulher, de nome Marta Villas-Boas, pousou sobre mim seu olhar terno e melancólico, ficou encantada. Disse-me que eu era uma menina muito bela e educada, “um verdadeiro anjinho!”, e que eu a maravilhara. Dirigiu-se às freiras, explicando-lhes que queria tanto uma menininha, mas que não podia ter filhos, por algumas deformações no organismo, e que, ao me ver, sentira que eram os anjos que me haviam posto em seu caminho, e pedindo-lhes que a dessem minha adoção. As freiras, naturalmente, condoídas com a pobre mulher, e considerando as despesas dos meus cuidados, não se opuseram. Não acheis que não me tinham algum carinho, porque estou certa de que elas, em toda minha vida, foram as pessoas que mais genuinamente me estimaram.

Juntei meus poucos pertences, entre sorrisos e lágrimas, e parti com eles.

Viajamos por vários dias, e passamos o Natal na estrada, sob uma forte tempestade; no entanto, nada podia abater a nossa alegria por estarmos juntos, e confesso que já existia entre nós uma profunda afeição recíproca. Antes do Ano Novo chegamos a nossa casa: uma suntuosa mansão, no topo da colina verdejante, com os fundos voltados para o lago espelhado. Fui tomada por uma alegria indizível, por uma nova vida que começava, por pais atentos e bondosos, por aquela casa gigantesca, pelo quarto que eu certamente teria, e até me esqueci das freiras e das antigas amigas.

Os anos decorreram assim tão perfeitos quanto poderiam ser. Meu pai, Bartolomeu Villas-Boas, embora sempre bastante reservado, não escondia o grande carinho que sentia por mim, sempre preocupado, com o maior zelo. Mas nada se igualava ao infinito amor e adoração que minha mãe nutria por mim. Falava para todos quanto encontrava o quanto eu era de uma meiguice inefável, de uma beleza majestática, e o quanto ela me amava e que verteria o próprio sangue por mim se o fosse necessário. E, em razão disso, de tamanho amor, também me tratava como um melindroso cristal, e se alarmava com qualquer situação, temendo que algo de grave pudesse me ocorrer. Não me deixava frequentar as aulas, e sequer me era dado sair de casa. Meus professores, os melhores encontrados, vinham me dar aulas em casa, aos seus cuidados. E trataram desde sempre de aflorar meus dotes: aprendi piano, canto, pintura, dança, e me versei em várias línguas.

Logo, me encontrava aos anos de juventude. A cada ano, tornara-me mais bonita. Minhas curvas, já antes suaves, agora revestiam-se de contornos que me davam um ar sensual. Meu rosto, de feições delgadas, pálido pela ausência de sol, encontrava-se sempre corado, e meus lábios, volumosos, eram de um claro rosa. Meus olhos eram negros como uma pantera, e diziam penetrar a alma de quem fitassem. Minhas mãos, delicadas, os dedinhos, finos e miúdos. Mas o que mais encantava os poucos que me viam, e eu bem sabia disso, eram meus pezinhos: pequenos, brandos e suaves, como de bonecas. E não nego que me admirasse da minha aparência, e passasse horas frente ao espelho, enfeitando-me, empoando-me. Agradava-me que me olhassem, e me admirassem, e até fazia esforço para isso. Portava-me solene e elegante, mas, nos meus passos, sempre imprimia um ar de lascívia, que arrancava suspiros dos raros afortunados. Pouco a pouco, como é natural, queria sair à cidade, conhecer os moços, e expor minha beleza. Devereis pensar, por agora, que sou uma vaidosa soberba, de um amor-próprio imensurável, uma fútil. Mas que moça jovem, nos auges de sua juventude, com um mínimo de beleza, não se fascinou com o que mais lhe havia de belo, ansiosamente desejando dar suas mostras?

Nesse entrementes, e me encontro acima de quaisquer precipitadas conclusões, meu pai, Bartolomeu, passou a mostrar um cada vez mais elevado interesse por mim, tecendo-me sempre bastantes elogios. Buscava-me para conversas, e falávamos por horas, dos assuntos os mais diversos; era agradável, e ele apresentava grandes conhecimentos. Diversas vezes punha-me em seus joelhos, e liámos juntos algumas boas histórias. Outras pegava-me pela mão e levava-me a passeios pelas terras arredores, contando deliciosas histórias que ali haviam se passado. Como eu, apreciava deveras a natureza, conhecia o nome de cada espécime de árvore e flor, e eu me encantava. Um encanto que para aqueles os quais tiveram um pai fascinante, não preciso me dar o trabalho de explicar.

Ao mesmo tempo, todo o deslumbre anterior que eu produzira em Marta foi-se extinguindo, gradualmente, dando lugar a uma fria indiferença, e eu percebia que cada vez mais ela procurava me evitar. Fitava-me com olhos ameaçadores, que me seguiam disfarçadamente onde quer que eu fosse. Falava-me brusca e secamente, quando necessário, com uma inflexão invariavelmente ríspida, e quando o fazia eliminara deliberada e decididamente de seu léxico a palavra “filha”.

Àquela altura, uma jovem, de uma mentalidade ainda pueril e simplória, meiga até certo ponto, cujos únicos conhecimentos vinham dos livros que lia, que vivia a maior parte de seus dias enclausurada em seus aposentos, e que, portanto, pouco travara contato com o ser humano em sua carne, em sua autenticidade, em sua essência, que poderia entrever de suas motivações? Que poderia inferir de suas razões?

Eu era tomada por uma inabarcável compunção apenas pelo pensamento de poder ter feito algo à minha tão amada e graciosa mãe que a tivesse ferido nos sentimentos. Teria eu lhe falado alguma malvadeza? Teria eu procedido com alguma ingratidão, que é o vício mais comum, mas o mais desonroso dos filhos? Meu Deus! eu me afligia e me atormentava, mas não encontrava as respostas. Eu a amava tanto, desveladamente, e era privada de seus carinhos, de seus afagos! E ela, hoje vejo, percebendo o que se me passava, regozijava-se no íntimo, alegrava-se do meu suplício interno, o que só a motivava a mais intensificar sua rudeza e seu descaso comigo.

Logo, pedia-lhe explicações, o porquê de tudo aquilo, mas ela se resumia a dizer que não havia nada a se explicar porque nada mudara entre nós. Então pedia que me disse: “Eu te amo, minha filha!”, e ela de pronto desconversava. Era uma tortura! Eu necessitava de seu amor, de seu apreço de antes.

Previsivelmente, não tardou que eu caísse adoentada. Fui acometida por uma grave e desconhecida enfermidade, que me deixou prostrada na cama, em meio a delírios febris e suores. Chamaram dezenas de médicos, os melhores, que, com ares frustrados, apenas faziam dizer: “não há solução”. Não demorou que meu pai desistisse deles, já sem esperança. Com o tempo, ficava mais e mais pálida, e meus lábios estavam sempre secos e exangues. Emagrecia rapidamente, e meu rosto ficava vincado e anguloso. Meus cabelos raleavam, quebradiços. Meus olhos destituíram-se de seu brilho anterior, e agora olhavam a tudo tristes e opacos.

Marta, durante toda a minha doença, se encontrou todo o tempo sentada, em uma cadeira em frente à minha cama, com o olhar fixo e severo em mim, dia e noite, sem cessar. Aqueles mesmos olhos que haviam me visto pela primeira vez na paróquia. Eu, já totalmente debilitada, não encontrava forças para cuidar de mim própria. Como não havia criados, Marta era quem tratava de lavar-me, vestir-me e dar-me comida, tudo o mais rude e impassivelmente feito. No fundo eu ainda sofria, mas não ousava lhe falar ou suplicar qualquer coisa.

Transcorreram-se alguns meses, que trouxeram consigo apenas a piora de meu estado, e agora eu passava os meus dias completamente inerte, com os olhos fitos no teto, sem reação qualquer. Todos já tinham minha morte como certa, contudo não ousavam confessar. Meu pai dizia-me que encontraria uma solução, que com toda a certeza haveria uma, que em breve eu recobraria todo o meu viço de antes, toda minha energia, e que assim poderíamos caminhar juntos pelos jardins, como nos outros tempos. Mas eu já estava alheia a tudo, perdida em delírios, e nem saberia dizer o que se passava em minha cabeça. Foram tempos obscuros. Ainda assim, mesmo após alguns anos, me é possível trazer à memória, com alguns detalhes, uma das fantasias que mais se apoderavam da minha mente: se consistia do seguinte: eu era uma pequena e miserável pulga, errando solitária pelos vazios interestelares do Universo, compelida por forças espantosas e descomunais que me jogavam ao seus confins mais tristes e sombrios, onde não havia qualquer luz, e reinava um silêncio desesperador. O frio também era mortal. E eu vociferava em lágrimas, a fim de que alguém me ouvisse, tirando-me de lá, mas eu não tinha voz. E assim eu ficava, a esmo, vagando só por eternidades. Eram incontáveis milhares de anos de dor. Era tão terrível a um ponto que não podeis conjecturar.

Enfim, nas vésperas do Natal desse mesmo ano, de súbito, veio uma leve melhora. Minha mente foi novamente trazida à consciência, e eu despertei dos meus delírios. Eu estava sozinha em meu quarto, estirada sobre a cama; Marta não se encontrava. A muito custo levantei-me, e descalça, com passos furtivos e silenciosos, dirigi-me pelos corredores ao quarto de meus pais. Até hoje me é impossível explicar racionalmente porque o fiz, mas, de alguma forma, naqueles instantes, bem o lembro, sentia uma influência extraordinária e supra-humana que agia sobre mim, e que me despertara com algum objetivo.

A porta do quarto, decorada com artigos natalinos, se encontrava apenas entreaberta, e pela pequena fresta podia-se ver pouca coisa, mas ainda assim me pus a olhar, cautelosamente. A única coisa que podia divisar era o espelho do toucador, e nele estava o reflexo de Marta. Ela escovava cuidadosamente os seus cabelos, já bastante grisalhos, com uma fisionomia aparentemente triste e abatida. Vi que brotavam algumas lágrimas de seus olhinhos miúdos. Então ela deixou cair a escova, e balançando negativamente a cabeça, estirou os braços e as costas das mãos frente a sua face, tomada por um profundo pesar. Puxava a pele das mãos, dos braços, soluçante. Deu dois murrinhos nas gavetas, e eis que percebi tudo. Agora via tudo como se olhasse por através de um cristal. Límpidas, inequívocas – todas as explicações.

Estava tomada por uma comoção quase insuportável, mas retornei rapidamente ao meu quarto, olhei ao relógio na parede, voltei à cama e fingi dormir, decidida por esperar mais algum tempo. Marta, nesse ínterim, passou por lá rapidamente, para me olhar, mas não se demorou.

Com os olhos semicerrados, notei que estava toda ataviada, provavelmente receberia algum convidado para a Ceia.

Aproximando-se das vinte e duas horas, levantei-me novamente, com as mãos trêmulas calcei os sapatos e sai. Desci vagarosamente as escadas, tomando o cuidado de não ser vista, e embrenhei-me pela cozinha à direita. Como o esperado, lá se encontrava Marta, de costas para mim, junto à uma bancada. Em todas as ocasiões de festa, como não possuíamos criados, ela própria preparava os alimentos, exigindo que ninguém entrasse na cozinha até que ela terminasse. Era a ocasião perfeita, pois sabia que meu pai nunca entraria ali. Também sabia que ele jamais iria ao meu quarto e notaria minha falta, pois já há algum tempo ele não me visitava, aparentemente cansado das tantas dificuldades que eu causava.

Com os passos amortecidos, avancei em direção a Marta, peguei uma faca que havia à mesa, e apunhalei-a, não pelas costas, porque antes que o fizesse ela percebera minha presença, se virando, com o olhar aterrorizado ao perceber o que eu trazia nas mãos. Acertei-a no peito, tapando-lhe a boca, a fim que não ouvissem seus gemidos. Morreu rapidamente. Quando seu sangue morno verteu sobre minhas mãos, senti um doce reconforto, e toda minha energia de há tempos ressurgiu, e eu sentia vontade de sorrir, gargalhar, numa alegria infinda. Era um êxtase infinito. Dancei solitária com a faca em punhos, esquecendo-me completamente da minha situação por alguns minutos. Depois do que arrastei seu corpo para um canto, com os devidos cuidados. Sentia uma força estrondosa em meus braços. Fiquei por tempos na cozinha, tomada por uma ansiedade tremenda!

Enfim, vendo o aproximar-se da meia-noite, sabendo que já aguardavam ansiosos a presença de Marta, dirigi-me à sala de jantar, mal podendo reprimir o riso que subia aos lábios.

Se encontravam à mesa meu pai e um de seus amigos e sua esposa, bebendo vinho e tagarelando. Ao me ver, ele abriu um enorme sorriso, entusiasmado com minha aparente melhora. Pousei a bandeja sobre a mesa, e o abracei. Ele, em meio a lágrimas, falava-me que aquele seria o melhor Natal que já tivera, pois seria o em que sua filha, sua amada filha, voltava à vida. Ficamos muito tempo abraçados. Ele, por fim, perguntou onde estava Marta, e nesse instante eu desvencilhei-me de seus braços, afastei-me de costas, e pus-me a gargalhar convulsivamente, uma risada homérica, e todo o meu corpo estremecia, enquanto todos me fitavam assustados e perplexos.

Apontei com o dedo trêmulo a bandeja sobre a mesa, e vociferei: “Está aqui convosco, senhores!”. Todos me olharam desconfiados e inertes, assomando ao seu espírito pensamentos que eles lutavam em recusar. Eu ainda sorria descomedidamente. Posso dizer que ficamos assim por minutos, sem ninguém ousar pronunciar qualquer palavra, nem fazer qualquer movimento. De repente, eu saí correndo, sem lhes dizer a mínima palavra, em direção à velha estrebaria, que ficava um pouco afastada da casa, mais abaixo na colina. Selei o mais novo cavalo, nele montei e parti, diria até desvairada. Creio que eles, na sala de jantar, ficaram estáticos por um bom tempo, sem se decidir a espiar o que havia na bandeja.

Assim, cavalguei por um longo tempo naquelas montanhas da região, embrenhando-me por matas, escondendo-me. Alimentava-me de frutos que encontrava, dormia sempre pouco e onde pudesse. No início tinha medo de que me encontrassem, e por isso vivi anos sem ter contato com qualquer vivalma. Finalmente, já de toda enfadada, triste pela solidão, decidi por me entregar, retornando à cidade, onde me prenderam, colocando-me nessa cela onde hoje estou.

Deveis vos perguntardes agora duas coisas: o que me levou a espreitar-me por trás de Marta e apunhala-la, assassinando-a, e o que havia na tal bandeja, qual o significado daquilo.

Para isso, necessito retomar quais foram as precisas conclusões que obtive enquanto mirava o reflexo de Marta no espelho. Ao vê-la repuxar dolorosamente a pele de suas mãos, em meio a lágrimas, conexionei as ideias, e tudo compreendi. Eu era uma flor que nascia esplendorosa para a vida, em todo o seu fulgor e encanto; uma estrela da aurora, que inebriava a todos com sua beleza. Uma flor em botão, como dizem. Cheia de viço e vigor, com a frescura da juventude. Conservava ainda uma pureza virginal, era uma moça cheia de pudores, inocente, para quem a vida apenas começava. Ao mesmo tempo ela, Marta, olhava a si própria, uma flor esmagada pelo peso dos anos, e em remorsos lancinantes via a sua lamentável decadência, o ocaso de sua beleza, o apagar de sua chama. As rugas cobriam-lhe pouco a pouco a face, os cabelos já ficavam cãs. A pele, sobretudo das mãos, era flácida, desagradável. Provavelmente já perdera, àquela altura, toda a energia de outros anos, e isso a mortificava. Talvez o marido já nem lhe procurasse à noite, e ela se sentisse só e acabada. A voz, antes firme, mas suave, era arruinada por uma rouquidão cavernosa. Seus olhos destituíam-se do brilho, e seu andar já vacilava, vergado pela velhice. Todavia, acima de tudo, penso que o que a castigou sobremodo foi reparar nos cuidados e zelos que meu pai me devotava, cuidados e zelos estes que já negava a ela.

Evidente que ela não podia suportar tamanho abismo entre nós, e nasceu-lhe tão logo o germe da inveja, revestido da indiferença. E vendo o quanto isso me afligia, a velha maldita toda se comprazia, e com muito prazer deve ter visto minha derrocada trazida pela doença. E com aqueles olhares, malditos olhares, roubava minha força e beleza. E eu, tola, me doía, pensando o que a ela poderia ter feito. Não duvido que também tenha me tido ódio, e certamente desejasse a minha morte.

Sabendo disso; sabendo que ela procurara acinzentar meus anos dourados da juventude, como poderia eu lhe perdoar? Precisava responder à altura àquela odiosa e invejosa. Por isso a matei. Por isso a assassinei, a única razão. Simples e clara.

Finalmente, com relação à bandeja, digo que aquilo foi apenas um chiste, uma dessas metáforas. Lá depositei as mãos daquela babilônica que me tentara furtar a beleza, e sobre elas aqueles olhos vampirescos que haviam tentado sugar minha seiva.