O caderno de Lavínia

“ Eu não posso lembrar, e talvez faça questão para que isso aconteça.Estou morta, cada pedaço de mim se foi com a tempestade, pode ser que tudo isso seja invenção da minha mente.Você pode, e deve achar o contrario.

Mas o que nos tornamos na verdade, foi um punhado de sonhos embutidos,

sacos de ossos transpostos por dor e sofrimento. A cidade nos sucumbiu e nesses dias são os anjos que morrem de overdose, é muito fácil sentar no sofá quente, e olhar para a a televisão, pensando que é ali que se encontra a salvação.

Tornamo-nos arrogantes, distantes, aves solitárias rumo ao alimento e a água, mas nosso olhar é vago e não temos mais sonhos.

Eu tento pensar no amanha e esse me causa arrepio, o que farei?

Só os bons se destacam e eu me vejo perdida entre um monte de livros , leio tudo e não entendo nada, estou cada vez mais distante e por incrível que pareça eu nem estou reclamando, sou prepotente e me acostumei com isso também, na verdade não quero nada e essa falta de querer dói como a um espinho na sola dos pés, faço coisas como se estivesse programada, até o amor tornou-se uma brincadeira de gosto amargo, não estou reclamando, mas sou uma adolescente fria e arrogante, meu nojo de mim aumenta a cada mês.”

Quando terminou de escrever a redação na mesma hora jogou-a fora, sorriu para o papel que rodopiava dentro da lata de lixo e pensou que a professora ficaria assustada, iria chamá-la para esclarecer e perguntar com aqueles olhos gigantes;

“ o que esta acontecendo Lavínia, você esta bem?”

“que isso professora estou ótima”

Saindo de perto deixando-a preocupada pesando que deveria chamar os pais da garota. Com um olhar de desprezo, afastou-se da lixeira e desistiu de fazer a redação, valia nota, e ela precisava de nota, mas não achou que seria interessante escrever sobre o que ela vinha pensando de sua vida, que tipo de redação é essa? Invasão de privacidade talvez, coisa do governo, sorrio com desdém e voltou para sua cama onde seu livro lhe esperava, quando arrumou-se para ler o celular tocou, olhou para o teto amaldiçoando o fato de ter um aparelho de comunicação, tudo que queria era ficar no silencio absoluto. Recusou um pouco, mas a pessoa era insistente e o celular estava fora do silencioso, levantou-se com muito esforço e foi até a estante onde seu aparelho encontrava-se gritando como um louco, então atendeu monotonamente, sem nem olhar quem era, ela falava arrastado e a voz saia em um tom de tédio, preguiçosa com uma sonoridade quase que inaudível:

-Alô?

-Lavínia? Sou eu tia Rose, sua mãe esta com você? Ela não atende o celular...

-Ah, oi tia, ela não esta, foi a missa deve ter o deixado no silencioso, daqui uma hora ela esta de volta, a senhora quer que eu deixe recado?

-Não, está tudo bem, fala pra ela quando chegar me ligar urgente.

-Tudo bem, até mais.

Desligou sem pensar duas vezes, nem ao menos esperou a bençao da tia, pensou que não era mais criança, e essa nem gostava dela, era tudo estética, tudo falso, família mesmo são os pais, os irmãos e olhe lá. Ajeitou-se novamente na cama, mas dessa vez o que atrapalhava sua leitura não era o celular, sua falta de concentração no que lia é que a interrompeu, pegou-se surpresa pensando no que a tia falara, urgente... Urgente... Queria falar com sua mãe urgente, mas o que há de tão urgente assim? Elas mal conversam, se veem lá de vez em quando e quando isso ocorre é para brigarem, deve ser isso, alguma briga nova surgindo, herança, fofocas, de praxe, aquietou-se achando-se muito complicado e intrometida novo sorriso de desdém, voltou-se para o livro , o tinha desde seus oito anos e de tempos em tempos retornava a Lê-lo, sentia-se presa a sua infância, sentia-se corrompida, parecia que não crescera, mas sentia-se extremamente madura, confusa, uma mulher em um corpo de menina de 17 anos.

Quando a conheci não sabia de nada disso, apenas vi uma menina muito bonita, sentada no banco de uma praça da cidade, lendo um livro, (lendo não) devorando-o, fiquei a observa-la, perplexo, ela nem me notara olhando-a fixamente, ela lia o livro como se este fosse salva-la a vida. Ora arrumava o cabelo, ora descruzava as pernas, era magra, cabelos curtos e usava óculos, estes que direto escorriam até a ponta de seu nariz e ela o empurrava para o local correto, sem desgrudar os olhos das paginas do livro, parecia não ver nada em volta, foi quando decidi me aproximar, sentia uma necessidade sem fim de falar com ela, qualquer coisa mas falar, me aproximei e meio bobo sentei ao seu lado, a única coisa que ela fez e muito remotamente, foi empurrar a bolsa para o lado, eu me aconcheguei e esperei o momento certo de falar com ela.

Passaram-se alguns minutos e tudo que fiz foi ficar sentado ao seu lado, olhando para os lados como se esperasse algo, e de fato esperava, esperava a brecha para falar com ela, só que esta não vinha, a menina não desgrudava os olhos do livro e então me atrevi, ao querer descobrir o nome do livro, mas quando me inclinei para ler o titulo, ela o fechou e me encarou, assustada e desconfiada, arrumou suas coisas rapidamente e levantou-se para ir embora, eu vendo essa serie de acontecimentos me assustei, não ela não podia ir embora, devia ter algo que eu pudesse fazer, no meu ato de pensar ao invés de agir ela já estava caminhando e indo rumo a faixa de pedestres, ia atravessar a rua ir embora para sempre, e eu não teria conversado com a menina do olhar brilhante, que tanto me encantara, foi então que vi, ela esquecera algo no banco, era um caderno, simples e com aparência de velho e desgastado, ele me corrompeu e nisso acabei perdendo-a de vista.

Sobrara apenas o caderno, segurei-o em minhas mãos úmidas, decidi abri-lo para ver se havia algum registro ou nome, mas a primeiro momento não achei nada disso, apenas um desenho na primeira folha, duas borboletas quase que se beijando e no fundo uma frase “ porque o mundo é uma teia de aranha”, não entendi muito bem, mas achei lindo, fiquei ainda mais encantado, comecei a esfoliar o caderno e no mudar de paginas pude notar que tratava-se de algo como um diário, mas diferente, tinham citações, tinham poemas, e escritos pessoais, não me atrevi a lê-los apenas esfoliava as paginas que exalavam um perfume doce.Olhei para os lados tentando enxergá-la, pensei comigo, vou ficar mais um pouco aqui, ela dará falta do caderno e vira busca-lo, fiquei a esperá-la mas nada dela voltar, foi então que uma ideia me iluminou, vou levá-lo para casa, amanha volto aqui na praça no mesmo horário e trago o caderno se eu a avistar o entrego, sorri, satisfeito da minha atitude e caminhei até meu apartamento que ficava a menos de duas quadras dali.

Quando cheguei em casa fui direto guardar o caderno, havia prometido para mim mesmo que não o leria, não era o certo a fazer, o máximo que eu fazia era abri-lo e observar o desenho que mal entendia, nunca fui bom com desenhos e suas metáforas, deixei-o na escrivaninha do lado da minha cama e fui preparar algo para comer, não pensava em outra coisa se não na menina, foi então que me achei sujo, de certa forma obsceno, eu um marmanjo passei a tarde observando uma menina, isso poderia me dar uns belos anos na cadeia, mas então parei para refletir, e em nenhum momento eu a olhei com maldade, pelo contrario ela me encantara, sua atenção com o livro, sua solidão na praça, coisa que a muito não via em lugar algum, o mundo virara uma tela de vidro, sem cor e sem graça mas naquela tarde eu tinha descoberto um pingo de cor que restara nessa civilização opaca, decidi que não poderia deixa-La passar como uma lembrança boa, precisava conhece-La.

Então comecei, ia a praça todos os dias depois do trabalho, levava o caderno e ficava lá, umas duas, três horas, e nada, duas semanas passaram-se e a garota não deu as caras, comecei a ficar abatido e chateado, toda noite abria o caderno na primeira pagina onde tinha o desenho e olhava-o até dormir, um amigo meu chegou a me falar que isso era doentio, eu falei para ele que são poucas as pessoas que nos causam coisas sinceras nesse mundo, e ela me causara algo diferente, precisava ter um dialogo doce com aquela garota, continuei, durante um mês inteiro fui a praça, depois me encontrei tão chateado e desiludido que desisti. Um dia muito revoltado com a situação joguei o caderno no chão, como esse era muito velho e sensível, o meu ato fez com que desprendesse uma folha, entrei em choque, corri para pega-La e não pude resistir, na folha tinha um poema e eu com toda a minha curiosidade acabei quebrando minha promessa pessoal e o li, me lembro como se fosse ontem das palavras nele escritas;

“Tarde vazia, as horas escorrem no relógio,

Pessoas passam e nem cumprimentam-se

Há distancia nos olhares

Há vazio no peito

Vivemos sobre medo e pressão

Conte-me uma história doce

Eu já não tenho nada no coração “

(Lavínia Souza)

A primeiro momento o sorriso e a felicidade inundaram-me, olhava o papel encantado, que lindas palavras então parei para interpretar o poema, e percebi a dor que exalavam dele, o observei bem e então revirei o baú da memória, buscando lembrar de alguma poeta com o nome de Lavínia Souza, a primeiro momento nada veio a minha mente, então uma ideia brincou La no fundo das minhas idéias, será que essa Lavínia era a própria menina que eu ficara a tarde toda observando? A dona do caderno que eu acabara de jogar no chão com raiva? Então não me contive mais, e comecei a ler o caderno, a primeiro momento com pesar mas ele logo se desfez, sentei-me como se fosse ler um documento importantíssimo, abri-o e novamente encarei o desenho, ia finalmente virar a pagina e o fiz, dei de cara com um novo poema, que mais parecia com uma introdução

“ Que as palavras sejam amargas então,

Pois o doce se vive, o fel deve ser escrito

Que as palavras tenham forma

De bicho papão ou de ladrão

Que roube de mim essa amargura

que leve embora toda a minha arrogância,

Escreverei algo triste e amargo,

Escreverei sobre o que não falo

Já que as palavras são o dedilhar de minha tristeza

Neste papel danificado pela poluição de minha avareza”

(Lavínia Souza)

Foi assim que seguiram-se os meus dias, eu devorava o caderno, e a cada dia sentia-me mais intimo de Lavínia, ela demonstrava-se cada vez mais incrível, descrevia seus dias e um deles ficou muito marcado em minha memória;

“Acabo de chegar da escola, minha cabeça vai explodir, por mim não saia de casa nunca mais, minha mãe me pressionou, disse que estou jogando minha vida e adolescência no lixo, eu não respondi , mas pensei que na verdade a vida em si já é um lixo, uma imundície e eu nada tenho para fazer. A hipocrisia me enoja, principalmente a minha própria, a escola é um teatro a vida é uma farsa, estou desgastada, as vezes penso em suicido mas sou hipócrita até para isso. O Leandro me ligou, disse que quer me ver sente saudades, eu sei muito bem do que ele sente saudade e tenho certeza absoluta que não é de mim, bom de certa forma não, e então parei para pensar, não gosto dele, não gosto de ninguém, e sim vou vê-lo me entregar para ele, rolar de um lado para outro, ouvir gemidos, soar feito uma porca, tremer, gozar sedenta de prazer, virar para o lado olha-lo e então o silencio reinara, saciados voltaremos para casa, nos despediremos como se fossemos dois desconhecidos, e então quando a sede do corpo do próximo bater novamente vamos nos encontrar, sentirmo-nos cada vez mais sozinho, de praxe! Tenho 17 anos e me sinto fadigada desse tipo de relacionamento, me sinto fadigada de viver, acho que a única coisa que eu queria no momento era um copo de chá, mas não quero sair do quarto nem para isso, sistema maldito o que você faz com as pessoas? Sou suja? Sim, imunda!”

Cada dia mais me encantava e me identificava com Lavínia, queria conhece-La, sentar e conversar durante horas, e dizer que sim, que as pessoas são hipócritas mas queria mostrar-lhe que o que há dentro de nós é o que faz a diferença, ainda não tornamo-nos escravos completos, e ela com toda sua desesperança me fazia ter sede de justiça. Um dia lendo seus escritos consegui descobri a escola que estudava, uma publica, ficava do outro lado da cidade, decidi ir até lá na minha folga.

Esperei a abertura dos portões, o caderno estava em minha mochila mas o levei só para ter segurança, não sabia se ia falar com ela, não sabia se teria abertura e nem coragem para isso. A multidão saia, e eu observava, encarava todos os rostos adolescentes, meninas maquiadas como mulheres, meninos desajeitados como crianças, gargalhadas e brincadeiras, passou a multidão e o fluxo na saída foi diminuindo, eu já desperançoso, mas decidi ficar até o ultimo aluno ou aluna sair, até os portões fecharem e o fiz, quando a inspetora fechou os portões a realidade foi caindo sobre minha mente doentia, o que acontece? O que estou fazendo aqui ? É melhor eu esquecer essa menina de vez, mas algo dentro de mim falava mais alto, era um desespero, parece que havia depositado nela toda a minha esperança de vida, minha vida toda apagada e opaca se ascendera quando fitei um pingo de luz na praça perto de casa, não podia desistir assim, mas não havia mais ninguém na escola e eu não tinha visto Lavínia em nenhum daqueles rostos. Voltei para casa derrotado, chateado, cheguei e fui direto abrir o caderno, estava quase terminando de ler e depois ? O que seria ? Iria rele-lo eternamente? Eu queria mais, eu tinha sede de Lavínia, ela tornara-se obcecação para mim, parecia algo doentio nos olhos alheios, mas eu sabia, sabia que na verdade tinha encontrado um anjo na terra, ele não podia ter ido embora naquela tarde, ele ainda estava por aqui, era Lavínia, e eu a queria, queria na minha vida, queria mostrar para o mundo toda a sua sede de revolta e transformação, algo estava errado no nosso sistema, e ela era a nossa coragem. Foi então que comecei a ler as duas ultimas paginas que me faltavam.

“Hoje a professora me passou uma redação ridícula, onde já se viu, de que adianta eu ficar descrevendo como estou sentindo-me? Estou como qualquer outra pessoa no mundo, desesperada, olho nas ruas os andarilhos abandonados, a sujeira misturada com o que nos sobrou de puro, como não ter desespero? Se a única coisa que nos resta é o dinheiro ? E mesmo este nos gera tantas brigas e discussões? Quero ir embora, quero a morte, quero que o sistema morra comigo, e que todos sejam livres depois do meu fechar de olhos!

Vamos cantar, sorrir e chorar

Vamos lutar e nos encantar

Vamos o rosto pintar

E com o sangue dos inocentes nos armar

Tenho que matar

Para o capitalismo alimentar

Você não será preso,

Essa é a ciranda da vez

Posso te contar um segredo?

Eu não existo, sou invenção, sou maldição

Sou enganação sou salvação

Você esta me olhando a horas e eu sei,

Acha que estou lendo o livro, na verdade estou cá te encarando

Eu não existo, sou sangue de maldição

Sou ilusão, quero desgraçar o que há de puro

Pareço a salvação mas sou enganação

Quero o sangue jorrando de minhas mãos

Quero o sangue jorrando dos corações

Sou impura, mas sou sincera

Não gosto desse mundo, mas não vou mudar nada

Ninguém gosta desse sistema e ninguém muda nada

Eu não existo, sou sensual, sou louca e doentia

Tenho prazer em não existir, tenho prazer em sumir

Você perdeu uma tarde na ilusão,

Talvez perdestes a vida atrás de algo que não existe,

Mas tenho de lhe dizer, eu te amo! “

(Lavínia Souza)

Então fechei o caderno, comecei a suar frio, e tudo virou vertigem, onde me encontro, as paredes estavam verdes, que dia eu fui ao parque? Eu fui ao parque? Eu quero salvação? Que mundo é esse? Cadê a menina dos olhos puros, palpitação.... Não sinto minhas pernas, não sinto nada, não existo.