NA SUA CASA NÃO TEM GELADEIRA?
Depois de uma ligação que durou, aproximadamente, dez minutos, lá estava ele no meio daquela rua, dentro do carro; parado; oco; intacto; quase um morto-vivo. Não sei exatamente por quanto tempo ele se encontrara daquele jeito.
Resolvi ir até ele, apesar de ser extremamente tímido. Mas quando o rapaz percebeu que eu me aproximara, logo, acelerou devagar e me fez andar mais depressa. Mesmo estando do lado de fora do automóvel pude ouvir sua gargalhada; alta e forte. Então, bati na janela traseira e ele parou o veículo. Tomei coragem e entrei fechando forte a porta, foi quando ele soltou a famosa e velha pergunta:
- Na sua casa não tem geladeira?
Sorri meio sem jeito, afinal, devo ter fechado com força pelo nervosismo e respondi que não.
A rua tinha pouca iluminação, seu rosto não estava totalmente nítido, mas ainda sim me agradava. O conheci pela internet no dia anterior e já estávamos nos encontrando hoje. - Minha vida não tem sentido quando não corro riscos. Me alimento de incertezas, gosto de imaginar que tudo pode acontecer. Talvez, isso seja fruto da minha educação rígida, talvez, seja personalidade da alma mesmo, só sei que não sou grande fã da função metalinguística, portanto, vou parar com as explicações e continuar...
O moço, que só havia me dito seu pseudônimo; "Di", era mais do que eu esperava, na verdade, prefiro chamá-lo de: Escrínio, já que considero-me uma coisa rara que precisa ser bem acolhida e cuidada. Era um homem de trinta anos, cabelos castanhos, cheiroso, com um olhar misterioso e impactante, não tirava os olhos dos meus.
Tentei procurar palavras para começar algum assunto, mas não obtive sucesso, sou um verdadeiro fracasso. Na verdade acho que estava esperando demais daquele encontro e ele só queria sexo mesmo. - Não que eu seja do tipo carente-iludido, não é isso. Apenas gosto de criar expectativas. É, talvez, eu seja iludido sim...
Bom, na verdade, o meu desejo era elevar-me com alguém para me glorificar, Embora, na vida tudo seja combinado sempre fiz questão de ser peça cega. Sou feito de surpresas.
No momento só estava me vendo mo período azul, mas tinha esperanças em me enxergar na fase rosa. Salve Picasso!
Queria que ele pegasse toda minha infância. Que me consumisse por inteiro. Que fosse o dono das minhas brincadeiras, do meu primeiro beijo, do meu casamento, dos meus futuros cabelos brancos, queria que ele se tornasse meus hormônios; tiroxina, adrenalina, estrógeno, insulina. Queria o senhor escrínio agindo no meu sistema nervoso, mesclando características do simpático e parassimpático, para me inibir e me estimular. Ser o que irá preencher o espaço vazio da minha cama, o motivo da minha alegria e, contudo, minha fonte de inspiração. Preciso de alguém que queira minha anemia, meu vírus, meu câncer, minha cura, meu Alzheimer e minha morte. Para sermos sepultados juntos e ressuscitarmos ao terceiro dia.
mas o estopim da minha situação foi me encontrar sozinho, mesmo acompanhado. Me encontrei de novo em “alerta geral”. Queria que minhas entrelinhas fossem menos abstratas, mas sou uma abstração por completo.
Tudo é abstrato, basta abrir os olhos da alma. Mas no fundo, queria algo concreto para ficar em paz. Queria que pudessem identificar e classificar coisas concretas, porém sei que é impossível.
não estava com a intenção de mudar nada, não tenho pedantismos.
Vivo pelas pessoas de verdade, vivo pela essência da vida. Não sou de grandes futilidades. Gosto muito do simples, do vento, do cheiro de pão de queijo saindo do forno, dos latidos do cachorro, do cantarolar dos pássaros. Amo a natureza, embora, me alimente de tecnologia.
Estou nessa por algum período, mas não sei falar de tempo quando se trata de amor.
Por fim, fiquei mais dois minutos naquele carro, dei o primeiro e último beijo naquele homem e disse:
- Isso aqui não é pra mim.
Saí do carro, bati a porta com força e gritei:
Sim, na minha casa tem geladeira!