SEM NOME
SEM NOME
Bastou nascer e já se recebe um nome, até mesmo antes se cogita qual será. Desde os primórdios parece que sempre foi assim. A maioria orgulha-se em dizê-lo e fazem questão de preservá-lo. Sentem um bem estar em pronunciá-lo.
Comigo è certo que isto tenha acontecido, já tive um nome que muito me orgulhava, mas Infelizmente agora, sinto enorme vergonha de tê-lo.
Não consigo e nem devo escrever meu próprio nome, nem falar, porque o perdi. Fui transformado em algo, se é que algo possa ser alguma coisa e, ter nome.
Certamente por menos que queira, existo e poderia até começar por chamar-me de monstro. Mas essa denominação me parece elogio. Horrendo, talvez ficasse melhor.
Consultei os sinônimos e tudo que li, é ameno demais ao que me sinto.
Preciso de um nome.
Mas, deixemos isso pra lá, não importa. Ele na hora oportuna virá naturalmente.
Essa perda de identidade começou nos idos dos anos cinqüenta, levado por um desvio de comportamento que foi acontecendo lentamente, sem que o sentisse e até hoje, estando em dois mil e cinco, ainda permanece.
Algo começou a envenenar-me, mas o veneno era mel e mais suave do que o melhor dos vinhos. Tinha um cheiro que ainda hoje me arrasta até aqueles dias. Comecei a perceber, que estava inteiramente dominado por essa droga que entorpece não o corpo, mas a alma. Vi claramente que jamais conseguiria me livrar. É algo tão terrível, que mente aquele que diz ter se livrado.
Bulevar, Avenida 28 de setembro, Vila Isabel. Junho 1953.
Até essa data, era uma pessoa inteira, normal como todas, alegre e feliz por completo. A partir daí, foi quando se iniciou a terrível transformação.
Desavisadamente talvez por instinto percebo uma mulher que anda em minha direção. Não que viesse falar comigo, apenas caminhava na calçada, uma transeunte simplesmente. Parecia deslizar suavemente, tal sua leveza. Sorria não sei porque. Talvez os duendes que habitam os oitis do bulevar, alegrassem sua alma. Seus dentes eram alvos como a armação de óculos que usava, e percebi através das lentes que seus olhos eram verdes de brilho intenso.
Apossou-se de mim naquele momento uma sensação desconhecida, aqueles olhos verdes se cravaram na minha alma e puxaram-me.
Enfeitiçado, com a razão fora de mim, dominado pela emoção, cumprimento a jovem, pois todo meu verbo desapareceu.
Ela para e em tom grave pergunta-me o que desejo.
Recupero a razão e respondo que o meu desejo é o mesmo que o dela. Não deixei que ela sequer pensasse.
Inquiriu-me novamente com o olhar e sorriu. Também sorri, e perguntei se poderia acompanhá-la. Com um simples movimento de cabeça, consentiu.
Cometo nesse momento meu primeiro delito e inicio a perda da minha identidade. Sabia que não poderia acompanhar a jovem, porque alguém que muito me amava, precisava da minha companhia e só contava comigo.
Não tive dó nem piedade, por puro egoísmo, em nome de algo que talvez começasse a nascer, consciente, abandonei a razão.
Feriu-me, mas o anestésico utilizado era muito forte.
Acabara de chegar do interior do estado e estava no Rio para conclusão de meus estudos. Havia deixado para trás pais e irmãos, que não deixava de vê-los semanalmente, ou quando muito por falta de dinheiro, um mês.
Deixei então de visitá-los.
Percebia que careciam de mim, que minha falta os machucava, mas não ligava. Somente nas datas festivas como Natal, Ano Novo aparecia. Assim mesmo no início, porque depois nem isso fazia.
Aqueles olhos verdes me enfeitiçaram de tal forma, que não conseguia me livrar. Pensava eu, isto é assim mesmo, que bom é o amor.
E comecei a espalhar delitos de toda ordem, do mais simples aos mais graves. Tornei-me um delinqüente aos quinze anos.
Aqueles que viviam ao meu lado, que me supriam de calor vital e financeiro, eu, em nada colaborava, era como se não existissem. Só os procurava na hora dos meus interesses e quando aparecia, os fazia sofrer mais ainda com a minha indiferença. Mas sentia a tristeza em cada olhar.
Meus pais distantes esses coitados, cada vez menos os via. Mentia, dizendo que muito tinha a estudar.
Minha mãe sabia eu, sofria demais com minha ausência. Como um verme nojento fingia não perceber e nem era homem no sentido da palavra, suficiente para admitir a verdade. Aqueles olhos verdes me cegavam. Mas não tinham culpa, não eram responsáveis pelos meus delitos, eu deliberadamente os cometia.
Sabia que estava errado, que tinha necessidade de provar que eu me amava, que não poderia me agredir tanto me anulando dessa forma. Mesmo porque, esse comportamento grande mal me fazia.
Mas qual cadê coragem? Sempre ouvi falar que ao amor tudo é permitido e perdoado. Com esse pretexto, como um zumbi seguia magoando todo mundo.
Os olhos verdes foram murchando e morreram e dei a todos um momento de trégua.
Mas durou pouco, novamente em meu caminho, agora com olhares de santa e postura de menina, surge um novo alguém.
Passei então a magoar por atacado, a praticar o mal conscientemente e o que mais hoje me horroriza é que feria sempre aos que mais me amavam.
Abandonei tudo, parentes, amigos de longo tempo e o que era o pior, até em meus estudos interferia negativamente, aquela gana de vencer já não havia. Faltava a aula para acompanhá-la na mais simples ocupação. Ela não era culpada, muito das vezes criticava-me por esse comportamento. Lutava com meu eu interior, com a minha formação de homem correto, com as minhas aspirações, mas esse lado sempre perdia.
Muitas vezes pedi a Deus em minhas orações que me modificasse, não que eliminasse, mas que atenuasse esse amor que se tornou um vício.
Realmente se acreditasse em feitiço, como disse anteriormente, diria novamente estar enfeitiçado.
Sentia o mal dentro de mim, mas não tinha forças para matá-lo. Questionavam-me, mas sempre achava uma desculpa esfarrapada.
Lembro bem, nessa época, muito entristecia os meus, pois os ignorava, no entanto notava que percebiam que enchia de mimos os dela, simplesmente para agradá-la. Esses atos não passavam despercebidos, eu sentia e tudo isso me oprimia, mas ninguém tinha culpa, eu é que me deixava oprimir com satisfação.
Nada via, nada escutava e, portanto nada tinha a falar.
A minha mudez calava fundo no coração dos meus amigos e parentes.
Não pensem que não houve reações. Muitos me alertaram, mostraram-me os erros, as barbaridades que cometia. Conseguia entender, mas daí a modificar-me, havia uma distância muito grande. O espanto é que apesar de saber o quanto todos sofriam com a minha indiferença, me escondia covardemente para não vê-los sofrer.
Meus pais tinham no filho homem, o ídolo de suas vidas. Aquele que foi, mas que um dia certamente voltaria para esparramar alegrias. Triste decepção.
Mais uma vez o encanto se foi e nada sofri, acordei do transe hipnótico de uma hora para outra.
E agora? Como voltar aos amigos e parentes se os havia abandonados, a troco de um punhado de caricias.
Temi represálias, pois bem que merecia.
Cabisbaixo eu voltei, mas quem realmente ama perdoa, e com surpresa fui recebido tal qual o filho pródigo.
Dessa vez a trégua foi um pouco mais longa.
Em pouco tempo voltei a ser eu novamente para a alegria de todos. Retomei meus estudos e toquei a vida para frente, não era mais um adolescente e necessitava trabalhar. Não foi fácil a retomada, mas com a ajuda de todos, principalmente dos parentes próximos mantive-me de pé sem desistir. E assim consegui por um bom período, progredir em meus estudos e financeiramente.
Apesar de tudo estar bem, sentia que algo faltava, havia um vazio que necessitava ser preenchido, não sabia onde estava esse buraco, mas ele existia. Então percebi que havia uma porta aberta que não tinha sido fechada, estava apenas encostada. Anteriormente sentia-me como um peixe, agora como um pescador.
Munido dos instrumentos necessário, comecei a jogar a rede, mas de malha larga. Não queria mais sardinha.
Numa lagoa tranqüila de águas claras, uma Iara caiu na minha rede. Linda, frágil, lourinha de olhos azuis ardentes, a desabrochar para a vida. Sua pele dourada parecia cintilar. Teria caído do céu e certamente se afogaria não fosse eu.
Essa. Levei para o altar.
Já escolado pelas vezes anteriores, consegui por um tempo magoar menos e tudo caminhava normalmente. Os anos se passaram, os frutos dessa união cresceram formando uma bela família. Poderia-se dizer até que estava feliz.
Com a agitação dos novos tempos, não havia momentos para esse tipo de questionamento, tocava a vida como se estivesse anestesiado.
Mas um dia senti, que o efeito anestésico estava passando, ou melhor, deram-me algo para acordar, um antídoto forte que me fez despertar. Precisei viajar, e conheci na viagem uma mulher de pele cor de cobre e olhos amendoados, falava suave como a brisa e cheirava a flores do campo. Suas mãos pareciam feitas de veludo e sua boca tinha gosto de framboesa silvestre.
Despertou-me encanto a sua inteligência e posição social. Pertencia ao corpo diplomático de um país de certa importância.
E todo o mal recomeçou.
Juro que lutei com todas as forças que possuía, mas a ânsia de amar mais uma vez, me fez refém e caí em outra armadilha do que chamam amor.
Todos os males que sempre causei desde o início, destruíram na verdade muito mais a mim, do que aos outros.
Mas agora com força assustadora de forma brutal, passei a destruir minha própria família. Então resolvi dar um basta, a matar esse mal destruidor que chamam de amor, algo tão terrível que para exercê-lo, você tem que causar o mal indiscriminadamente, a ponto de fazer sofrer a carne da sua carne.
Chega de causar tanto sofrimento porque já não era só aos meus, mas também aos dela. Passei a ter vergonha de mim mesmo, a esconder-me de todos, pois não tinha cara de enfrentar as pessoas de frente. Com isso fui perdendo a minha identidade e deixei de pronunciar meu nome, aquele som me envergonhava de tal forma, que jurei não mais, nem mesmo escrevê-lo.
Mas não me conformava porque sempre ouvira falar, que a coisa mais linda e bela que move inclusive o mundo seria o tal amor. Por que logo comigo não deu certo?
Resolvi então observar e até mesmo pesquisar o que se passava com as outras pessoas quando essas começavam com estória de amar.
Fiquei então estarrecido com o resultado das minhas reflexões, percebi que o mal não estava só em mim. A maioria das pessoas contaminada com esse mal perde completamente a identidade, tornam-se escravos desse sentimento e, saem cometendo toda espécie de loucura. A razão desaparece, dando lugar a obsessão cega.
O mal não escolhe carcaça, ataca qualquer um, seja pobre, rico, sábio, inculto, gordo ou magro. Todos se rendem a essa peste que assola e confunde a humanidade.
Em razão das minhas observações, não me sinto agora diferente, sou igual a todos, por isso não me envergonho mais do meu nome e, tranqüilamente posso pronuncia-lo e escreve-lo à vontade.
Sinto-me um vencedor, apesar de não ter matado o grande vilão, pois como nas estórias em quadrinhos nunca morre, para poder um dia quem sabe voltar a atacar.
SEM NOME
Bastou nascer e já se recebe um nome, até mesmo antes se cogita qual será. Desde os primórdios parece que sempre foi assim. A maioria orgulha-se em dizê-lo e fazem questão de preservá-lo. Sentem um bem estar em pronunciá-lo.
Comigo è certo que isto tenha acontecido, já tive um nome que muito me orgulhava, mas Infelizmente agora, sinto enorme vergonha de tê-lo.
Não consigo e nem devo escrever meu próprio nome, nem falar, porque o perdi. Fui transformado em algo, se é que algo possa ser alguma coisa e, ter nome.
Certamente por menos que queira, existo e poderia até começar por chamar-me de monstro. Mas essa denominação me parece elogio. Horrendo, talvez ficasse melhor.
Consultei os sinônimos e tudo que li, é ameno demais ao que me sinto.
Preciso de um nome.
Mas, deixemos isso pra lá, não importa. Ele na hora oportuna virá naturalmente.
Essa perda de identidade começou nos idos dos anos cinqüenta, levado por um desvio de comportamento que foi acontecendo lentamente, sem que o sentisse e até hoje, estando em dois mil e cinco, ainda permanece.
Algo começou a envenenar-me, mas o veneno era mel e mais suave do que o melhor dos vinhos. Tinha um cheiro que ainda hoje me arrasta até aqueles dias. Comecei a perceber, que estava inteiramente dominado por essa droga que entorpece não o corpo, mas a alma. Vi claramente que jamais conseguiria me livrar. É algo tão terrível, que mente aquele que diz ter se livrado.
Bulevar, Avenida 28 de setembro, Vila Isabel. Junho 1953.
Até essa data, era uma pessoa inteira, normal como todas, alegre e feliz por completo. A partir daí, foi quando se iniciou a terrível transformação.
Desavisadamente talvez por instinto percebo uma mulher que anda em minha direção. Não que viesse falar comigo, apenas caminhava na calçada, uma transeunte simplesmente. Parecia deslizar suavemente, tal sua leveza. Sorria não sei porque. Talvez os duendes que habitam os oitis do bulevar, alegrassem sua alma. Seus dentes eram alvos como a armação de óculos que usava, e percebi através das lentes que seus olhos eram verdes de brilho intenso.
Apossou-se de mim naquele momento uma sensação desconhecida, aqueles olhos verdes se cravaram na minha alma e puxaram-me.
Enfeitiçado, com a razão fora de mim, dominado pela emoção, cumprimento a jovem, pois todo meu verbo desapareceu.
Ela para e em tom grave pergunta-me o que desejo.
Recupero a razão e respondo que o meu desejo é o mesmo que o dela. Não deixei que ela sequer pensasse.
Inquiriu-me novamente com o olhar e sorriu. Também sorri, e perguntei se poderia acompanhá-la. Com um simples movimento de cabeça, consentiu.
Cometo nesse momento meu primeiro delito e inicio a perda da minha identidade. Sabia que não poderia acompanhar a jovem, porque alguém que muito me amava, precisava da minha companhia e só contava comigo.
Não tive dó nem piedade, por puro egoísmo, em nome de algo que talvez começasse a nascer, consciente, abandonei a razão.
Feriu-me, mas o anestésico utilizado era muito forte.
Acabara de chegar do interior do estado e estava no Rio para conclusão de meus estudos. Havia deixado para trás pais e irmãos, que não deixava de vê-los semanalmente, ou quando muito por falta de dinheiro, um mês.
Deixei então de visitá-los.
Percebia que careciam de mim, que minha falta os machucava, mas não ligava. Somente nas datas festivas como Natal, Ano Novo aparecia. Assim mesmo no início, porque depois nem isso fazia.
Aqueles olhos verdes me enfeitiçaram de tal forma, que não conseguia me livrar. Pensava eu, isto é assim mesmo, que bom é o amor.
E comecei a espalhar delitos de toda ordem, do mais simples aos mais graves. Tornei-me um delinqüente aos quinze anos.
Aqueles que viviam ao meu lado, que me supriam de calor vital e financeiro, eu, em nada colaborava, era como se não existissem. Só os procurava na hora dos meus interesses e quando aparecia, os fazia sofrer mais ainda com a minha indiferença. Mas sentia a tristeza em cada olhar.
Meus pais distantes esses coitados, cada vez menos os via. Mentia, dizendo que muito tinha a estudar.
Minha mãe sabia eu, sofria demais com minha ausência. Como um verme nojento fingia não perceber e nem era homem no sentido da palavra, suficiente para admitir a verdade. Aqueles olhos verdes me cegavam. Mas não tinham culpa, não eram responsáveis pelos meus delitos, eu deliberadamente os cometia.
Sabia que estava errado, que tinha necessidade de provar que eu me amava, que não poderia me agredir tanto me anulando dessa forma. Mesmo porque, esse comportamento grande mal me fazia.
Mas qual cadê coragem? Sempre ouvi falar que ao amor tudo é permitido e perdoado. Com esse pretexto, como um zumbi seguia magoando todo mundo.
Os olhos verdes foram murchando e morreram e dei a todos um momento de trégua.
Mas durou pouco, novamente em meu caminho, agora com olhares de santa e postura de menina, surge um novo alguém.
Passei então a magoar por atacado, a praticar o mal conscientemente e o que mais hoje me horroriza é que feria sempre aos que mais me amavam.
Abandonei tudo, parentes, amigos de longo tempo e o que era o pior, até em meus estudos interferia negativamente, aquela gana de vencer já não havia. Faltava a aula para acompanhá-la na mais simples ocupação. Ela não era culpada, muito das vezes criticava-me por esse comportamento. Lutava com meu eu interior, com a minha formação de homem correto, com as minhas aspirações, mas esse lado sempre perdia.
Muitas vezes pedi a Deus em minhas orações que me modificasse, não que eliminasse, mas que atenuasse esse amor que se tornou um vício.
Realmente se acreditasse em feitiço, como disse anteriormente, diria novamente estar enfeitiçado.
Sentia o mal dentro de mim, mas não tinha forças para matá-lo. Questionavam-me, mas sempre achava uma desculpa esfarrapada.
Lembro bem, nessa época, muito entristecia os meus, pois os ignorava, no entanto notava que percebiam que enchia de mimos os dela, simplesmente para agradá-la. Esses atos não passavam despercebidos, eu sentia e tudo isso me oprimia, mas ninguém tinha culpa, eu é que me deixava oprimir com satisfação.
Nada via, nada escutava e, portanto nada tinha a falar.
A minha mudez calava fundo no coração dos meus amigos e parentes.
Não pensem que não houve reações. Muitos me alertaram, mostraram-me os erros, as barbaridades que cometia. Conseguia entender, mas daí a modificar-me, havia uma distância muito grande. O espanto é que apesar de saber o quanto todos sofriam com a minha indiferença, me escondia covardemente para não vê-los sofrer.
Meus pais tinham no filho homem, o ídolo de suas vidas. Aquele que foi, mas que um dia certamente voltaria para esparramar alegrias. Triste decepção.
Mais uma vez o encanto se foi e nada sofri, acordei do transe hipnótico de uma hora para outra.
E agora? Como voltar aos amigos e parentes se os havia abandonados, a troco de um punhado de caricias.
Temi represálias, pois bem que merecia.
Cabisbaixo eu voltei, mas quem realmente ama perdoa, e com surpresa fui recebido tal qual o filho pródigo.
Dessa vez a trégua foi um pouco mais longa.
Em pouco tempo voltei a ser eu novamente para a alegria de todos. Retomei meus estudos e toquei a vida para frente, não era mais um adolescente e necessitava trabalhar. Não foi fácil a retomada, mas com a ajuda de todos, principalmente dos parentes próximos mantive-me de pé sem desistir. E assim consegui por um bom período, progredir em meus estudos e financeiramente.
Apesar de tudo estar bem, sentia que algo faltava, havia um vazio que necessitava ser preenchido, não sabia onde estava esse buraco, mas ele existia. Então percebi que havia uma porta aberta que não tinha sido fechada, estava apenas encostada. Anteriormente sentia-me como um peixe, agora como um pescador.
Munido dos instrumentos necessário, comecei a jogar a rede, mas de malha larga. Não queria mais sardinha.
Numa lagoa tranqüila de águas claras, uma Iara caiu na minha rede. Linda, frágil, lourinha de olhos azuis ardentes, a desabrochar para a vida. Sua pele dourada parecia cintilar. Teria caído do céu e certamente se afogaria não fosse eu.
Essa. Levei para o altar.
Já escolado pelas vezes anteriores, consegui por um tempo magoar menos e tudo caminhava normalmente. Os anos se passaram, os frutos dessa união cresceram formando uma bela família. Poderia-se dizer até que estava feliz.
Com a agitação dos novos tempos, não havia momentos para esse tipo de questionamento, tocava a vida como se estivesse anestesiado.
Mas um dia senti, que o efeito anestésico estava passando, ou melhor, deram-me algo para acordar, um antídoto forte que me fez despertar. Precisei viajar, e conheci na viagem uma mulher de pele cor de cobre e olhos amendoados, falava suave como a brisa e cheirava a flores do campo. Suas mãos pareciam feitas de veludo e sua boca tinha gosto de framboesa silvestre.
Despertou-me encanto a sua inteligência e posição social. Pertencia ao corpo diplomático de um país de certa importância.
E todo o mal recomeçou.
Juro que lutei com todas as forças que possuía, mas a ânsia de amar mais uma vez, me fez refém e caí em outra armadilha do que chamam amor.
Todos os males que sempre causei desde o início, destruíram na verdade muito mais a mim, do que aos outros.
Mas agora com força assustadora de forma brutal, passei a destruir minha própria família. Então resolvi dar um basta, a matar esse mal destruidor que chamam de amor, algo tão terrível que para exercê-lo, você tem que causar o mal indiscriminadamente, a ponto de fazer sofrer a carne da sua carne.
Chega de causar tanto sofrimento porque já não era só aos meus, mas também aos dela. Passei a ter vergonha de mim mesmo, a esconder-me de todos, pois não tinha cara de enfrentar as pessoas de frente. Com isso fui perdendo a minha identidade e deixei de pronunciar meu nome, aquele som me envergonhava de tal forma, que jurei não mais, nem mesmo escrevê-lo.
Mas não me conformava porque sempre ouvira falar, que a coisa mais linda e bela que move inclusive o mundo seria o tal amor. Por que logo comigo não deu certo?
Resolvi então observar e até mesmo pesquisar o que se passava com as outras pessoas quando essas começavam com estória de amar.
Fiquei então estarrecido com o resultado das minhas reflexões, percebi que o mal não estava só em mim. A maioria das pessoas contaminada com esse mal perde completamente a identidade, tornam-se escravos desse sentimento e, saem cometendo toda espécie de loucura. A razão desaparece, dando lugar a obsessão cega.
O mal não escolhe carcaça, ataca qualquer um, seja pobre, rico, sábio, inculto, gordo ou magro. Todos se rendem a essa peste que assola e confunde a humanidade.
Em razão das minhas observações, não me sinto agora diferente, sou igual a todos, por isso não me envergonho mais do meu nome e, tranqüilamente posso pronuncia-lo e escreve-lo à vontade.
Sinto-me um vencedor, apesar de não ter matado o grande vilão, pois como nas estórias em quadrinhos nunca morre, para poder um dia quem sabe voltar a atacar.