Uma Boca
Brinco de girar a pedra de gelo no copo com o canudo. Ele me observa enquanto declama um discurso sem fim sobre qualquer coisa da qual eu não quero saber. Não entendo uma palavra se quer, mas o escuto. Gosto de sua voz, é macia e quente. Mansa. Poderia dormir ali mesmo, ouvindo-o, não me cansaria, repousaria em sua carne ou até mesmo no chão do banheiro. O embalo aconchegante e quase maternal é o que realmente importaria. Apoio o queixo no punho cerrado e repouso a cabeça no espelho do bar. O frio do vidro na têmpora. Ele abre um imenso sorriso, de orelha a orelha. Ah, esse sorriso! Branquíssimo e grandessíssimo, quase um talho no rosto moreno, que se abre de forma visceral, obscena, como se fosse virar ao avesso toda a pele do rosto. Ele não sabe que é todo uma boca. Uma bocarra que me sorri no escuro, de dentes grandes e leitosos, perfeitamente alinhados, que me beija, me lambe, me chupa e me morde. Que me sopra, me suplica, me pede e me implora. Uma boca completamente avulsa a todo o resto, mas que não é capaz de me reter nem me engolir. Uma boca que me deixa escapar. Não me mastiga, no máximo me mordisca bem de leve, rente a pele, e se afasta amedrontada. Morrendo de medo da minha. Aperto sua mão sobre a mesa e sorrio de volta, mesmo sem ter dado atenção ao que disse. Ele para o olhar castanho e molhado de menino bobo no meu. Em minha cabeça só há a certeza de que vai doer quando eu for embora e a dúvida se peço outra bebida.