Olhares

Tantas pegadas e histórias cruzam nossos caminhos todos os dias que as expressões fechadas e “bom dias” ignorados se tornam rotina no cotidiano carrancudo de uma cidade.

Ao final de mais um dia exaustivo, os ônibus partem para todas as direções, lotados de cabeças sedentas pelo aconchego de um leito. Cheios de saudades, sentimentos e histórias de inúmeros trabalhadores, tão semelhantes entre si. Todos em busca de um amanhã um pouco melhor.

Embora o véu da noite tenha começado a cobrir o céu e as lâmpadas, a colorir as ruas escuras, o dia não estava perto do final para mim. Depois de sair do emprego vespertino, precisava pegar um ônibus para chegar ao trabalho noturno, como segurança em uma farmácia. Enquanto dava meus arrastados passos cansados da labuta para chegar ao terminal rodoviário, as pessoas passavam como torpedos sem direção e coração.

De repente, entre a multidão de Joões e Marias, um olhar correspondido. Quase uma rebelde, encostada ao lado da porta traseira de um ônibus, com o pé direito sobre a lataria e fones nos ouvidos. Assim, simplesmente sem se importar com o mundo a sua volta. Sem amigos por perto e sem o martelo da preocupação com o relógio a incomodá-la. Ela seria apenas mais uma entre tantas outras mulheres, mas não, ela não era mais uma.

Ao passar à sua frente, fui bombardeado sem dó por seu ingênuo e sereno olhar. Seus profundos olhos castanhos me convidaram a mergulhar em suas infinitas profundezas. Não existe uma fórmula para esquecê-los. É impossível.

Sentei no banco em frente ao ônibus em que ela estava para esperar o que me levaria ao trabalho, em outro destino. Mesmo de longe, não tinha como deixar de observá-la. À distância, nossos olhares continuaram a se entrelaçar. Tímidos, é verdade, mas fatais.

O ônibus dela abriu as portas e o motorista estava se preparando para partir, enquanto o meu não dava sinais de quando iria chegar. Veria-a pela última vez? Deixaria-a escapar entre meus dedos para se misturar a multidão e fugir de vista? Não! Decidi me despir de todas as formalidades e embarcar no mesmo ônibus que ela. Sem me preocupar com horários e prazos a serem cumpridos.

Quando ela me viu dentro do ônibus, os mesmos grandes olhos juvenis me olharam com grande espanto. Queria que não tivessem lugares desocupados para que eu pudesse ficar em pé ao seu lado, só para sentir seu aroma. Infelizmente, ainda havia cadeiras vazias e me sentei duas poltronas à sua frente.

Entre freadas e paradas nas congestionadas avenidas da cidade, bisbilhotava discretamente para ter certeza de que ela ainda estava lá. E estava. Em um surto incomum de coragem, peguei um pedaço qualquer de papel e anotei meu telefone para poder entregar a ela. Não tinha a mínima certeza do que estava fazendo. Apaguei e tornei a anotar meu número na quantidade de vezes em que meu acelerado coração pulsava.

Chegou o momento de descer. Do contrário, ficaria muito longe para eu voltar. Em uma última verificada, notei que ela não estava mais lá. A sensação de frustração tomou conta de mim inteiramente. Quando levantei para chegar até a porta, percebi que ela continuava no ônibus, mas tinha passado para a cadeira ao lado. Ainda estava com o papel na mão, mas fiquei sem reação, à medida que fui sendo empurrado por quem estava atrás de mim e também precisava descer. “Entrego, não entrego, entrego, não entrego”. O dilema insano tomou conta de minha cabeça. Olhei pela última vez para a moldura perfeita formada por seu rosto. Os longos e sedosos cabelos eram ruivos, como fogo que arde sem fim dentro do peito. A delicada pele branca, como pétalas de uma flor rara. E seus apaixonantes olhos cor de mel.

Saí do ônibus com o papel em mãos e a imediata raiva de ter, novamente, sucumbido a minha corriqueira covardia. Amassei a folha como se estivesse esganando meu próprio pescoço. Pensei até em correr atrás do ônibus, mas já era tarde demais. Amanhã, quem sabe, posso reencontrá-la e dizer todas as palavras que me sufocaram? Porém, em um mundo de poucos olhares, perdi a chance de deixar de ser só mais um medroso.

Aldir Junior
Enviado por Aldir Junior em 21/10/2013
Código do texto: T4535231
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