VOO AO INFINITO

__ Entre Padre Alberto.

Foi assim que Marta recebeu o sacerdote que iria atender sua mãe, já em leito de agonia. Fazia tempo que Dona Isolda não saía mais de sua cama. Jovem, ela era moça namoradeira, festeira, tanto que estava agora viúva do seu terceiro marido. Tinha doze filhos dos dois primeiros casamentos. Com Antônio, o último, que partira há cinco meses não teve nenhuma criança. Também a idade já não o permitia. Para ela, este era apenas um companheiro, um alguém pra cuidar e ser cuidado.

__ Sá bênça padre, balbuciou aquela senhora de noventa e oito anos, impossibilitada de caminhar sozinha, mas com a lucidez da juventude vívida e transparente naquele olhar quase suplicante.

O brilho no olhar de Isolda ainda relembrava seus tempos de menina moça na escola. Desde aquela época, que menina nem estudava direito, ela era uma exceção à regra, gostava de ajudar as pessoas. Tanto que ela fez e aprontou que vivia levando bronca do seu pai. Ela tinha a mania de juntar em sua casa os meninos da escola e os colegas, e esperta e inteligente que era, passava a contribuir para que os outros aprendessem. Isolda era danada de boa nas contas. Os meninos que ficavam a tarde inteira no serviço pesado da roça não tinham, muitas vezes, tempo e descanso para treinar as operações matemáticas da professora. E eram tantas... Daí a solidariedade de Isolda que tinha que ouvir do pai os xingos e depois ganhar dele um afago. O jeito dela explicar para os meninos era um jeitinho mais próximo, mais acessível, e eles saíam de lá fininhos na matemática.

__ Essa menina é boa moça, dizia o pai.

Padre Alberto cumprimentou sorridente aquela senhora que ainda forçava um sorriso nos lábios, mesmo trêmulos de forças parcas, mas que transmitia no olhar inocente a claridade ciente que estava em suas palavras derradeiras e suas lágrimas últimas. Estas até já se estavam escasseando diante da serenidade de boa alma que se despedia deste destino e passava a contemplar o alaranjeamento do ocaso da vida que lhe escapava pelas mãos calejadas de uma abundante vida. Sua vida estava agora como uma névoa de fim de tarde de inverno, que a cada segundo se torna mais densa e obscura.

Isolda virou ligeiramente o rosto e viu Pe. Alberto com seu sorriso jovem. Ela já estava acostumada a ele. Era padre na cidade já há um bom tempo e ela frequentava vários grupos e ia sempre às missas. Havia pedido ao padre que não a deixasse sem a comunhão diária quando seu corpo se recusasse a sair de casa. E ele nunca negou. Sempre alguém levava até seu leito a Eucaristia.

Um sorriso acompanhado de uma lágrima singela acompanhou a chegada do amigo tão esperado. Conseguiu falar algumas palavras, mesmo diante do gesto de silêncio feito por Pe. Alberto, para lhe poupar energia necessária para ainda terminar sua missão nesta Terra.

__ Eu sabia que o sinhô viria.

Sua voz antes lúcida agora estava rouca e pesada, como que coberta por um pigarro intenso. Em vão tentava erguer a mão para cumprimentar a visita, mas as forças esvaíam de seu corpo cansado.

__ Eu não podia partir sem ver o sinhô. Quero estar com Deus ainda hoje no paraíso, como o bom ladrão.

__ Tudo bem Dona Isolda, não precisa forçar muito, dizia Pe. Alberto tentando evitar um pouco a fadiga da senhora que se despedia da vida como um pássaro que alça seu último voo rumo ao mar adentro, sem volta.

__ Mas eu quero falar, dizia. É esquisito morrer, padre. Parece que já tava esperando e parece que sei o que vai acontecer. Fecho os olhos e imagino uma viagem, um voo, algo bem suave. Sabe padre, morrer não é tão ruim assim. Estou indo feliz. A gente passa uma vida inteira tentando evitar a morte, mas ela chega né padre. E minha hora é chegada, mas tá doendo não. Sabe padre, eu to aqui já passando da hora de ir mesmo. Esse mundo não é mais o meu mundo. Todo mundo hoje em dia é muito esquisito, a gente não vê ninguém mais com cuidado dos outros. O povo de hoje é uma correria danada que nem tem tempo de conversar. Eu to muito velha padre.

__ Não, dona Isolda, disse o padre entre um singelo sorriso. A senhora não está velha não. Esse mundo que hoje é mesmo maluco. Mundo bom é o mundo que a senhora viveu e a vida que a senhora teve. Fique tranquila que Deus vai lhe acolher com carinho.

__ Não padre, eu não sou desta terra mais. Mas não to triste de jeito nenhum. Estou indo encontrar meu povo que já ta lá em cima. Só peço a Deus que me receba hoje na glória do céu.

Parou um instante para tossir e assim permaneceu por um momento, até que Marta chegou para ver o que havia. Não era nada, no entanto. Esperaram solenemente que ela se recompusesse e ele lhe perguntou suavemente.

__ Quer se confessar antes Dona Isolda? Perguntou amigavelmente.

__ Acho que não meu filho. Estou aqui nesta cama há dois meses. Não reclamei e aceitei minha condição. Não desejei mal a ninguém e não tenho a quem perdoar. Se por aí tiver alguém que precisa de meu perdão ele está concedido. Não tenho mágoa nenhuma e parto com o coração limpo.

Pe. Alberto aplicou-lhe a unção dos enfermos, e ao tocar o óleo no corpo enfermo e enrugado, ela sorriu alegremente, como que pronta a entregar sua alma ao Pai. Ouvia ao longe o canto dos pássaros que ela alimentava com sementes diariamente. Eles pareciam se despedirem dela. Todas as tardes eles esperavam a canjiquinha que ela jogava a eles. Dizia que queria ser como um deles, voar por aí, ir ao alto, observar de cima...

Ouvia-se um choro sofrido que vinha da cozinha, dos lábios de Marta que, mesmo conformada, sofria com aquele adeus. Eram só as duas naquela casa e a filha ficaria ali com tantas lembranças da mãe. Seus irmãos já estavam a caminho. A cada canto da casa que ela olhasse estaria um pedaço de felicidade vividas juntas. Eram uma para a outra.

Uma hora depois de ficar contemplando aquele rosto e segurando a frágil mão daquela senhora, o padre se despediu. Ouvira o som dos sinos da igreja tocarem e lembrou-se do horário da missa. Deu um beijo no rosto de Isolda e se foi. Ela sorria ao ouvir aquele ruído dos céus que emanava para o alto o convite para a visita à casa do Pai. Era como a música de sua vida, agora derradeira vez ouvida.

Durante a missa Pe. Alberto falava do exemplo daquela senhora, quando um pássaro rodopiou dentro da igreja e pousou no altar. Pareceu contemplar um instante. solenemente levantou voo logo em seguida, saindo pela porta principal da igreja e subindo para as nuvens. Um nó na garganta do padre foi visível até o fim de sua homilia.

Terminada a missa, Marta aguardava na porta. Sorriu entre lágrimas e disse apenas:

__ Ela voou para os braços do Criador.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 18/10/2013
Reeditado em 18/10/2013
Código do texto: T4531629
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