ÕNIBUS AMARELO.
Era quase madrugada, não sei a hora, uma, duas? Nem isto... não sei.
Mas lembro com clareza que eu estava na cozinha de casa, sozinho, dos quartos eu podia ouvir meus pais e irmã dormindo, uma sinfonia feia de roncos e peidos ou uma competição talvez!
Só lembro que pelo que eu podia ouvir o vencedor permaneceria indefinido por muito tempo.
Na pia inox velha e amassada a torneira pingava incessante, nem por borracha nem dar reaperto nada resolvera aquele problema, na verdade todos nos sabíamos qual era a solução, comprar uma nova, simples assim!
Só que não se podia gastar com algo tão pouco essencial na verdade mesmo que a droga da torneira se se desmancha meu pai ainda não gastaria com uma nova, em algum lugar ele conseguiria uma torneira velha pra por no lugar.
Era neste tipo de mundo que eu sentia que vivia! Um mundo de segunda mão um mundo reaproveitado, de sobras e rejeitos. Pratos velhos, talheres de mil tipos diferentes, ganhados, comprados, achados, roubados nem sei... uma miscelânea de facas garfos e facas que não combinavam, panelas amassadas copos de extrato de tomate ou requeijão.
Nossos botijões de gás eu chamava de zumbis, pois sempre se arrancava deles uma sobrevida mesmo quando já se havia dado como mortos. Deita-los não chão virar de ponta a cabeça, mil truques pra garantir que o sacrifício de se gastar com um botijão novo só seria feito depois de o velho ter sido sugado ate a última preciosa gota possível.
Roupas rotas, compradas em brechós ou quando muito nas lojas mais populares da cidade, tênis artigo de luxo só comprado nos mesmos lugares ou ganhados por quem era abastado.
Eu odiava aquela maldita miséria filha da puta em que vivia. Odiava ver meu pai pedreiro trabalhar como um cavalo 12 horas por dia pra ganhar uns trocados que mal nos mantinha, odiava ver minha mãe peregrinando pelos corredores do supermercado em busca de itens que pudéssemos pagar, peregrinando por vários mercados para conseguir a ínfima e sempre insuficiente compra do mês, odiava meus cadernos e a mochila puída com que ia a escola.
Sentia o sangue ferver em puro ódio adolescente quando via os garotinhos bacanas da escola esbanjando dinheiro na compra de lanches durante o intervalo com suas roupas de marca e tênis caríssimos, descendo dos enormes carrões dos pais na frente da escola.
Eu os odiava mortalmente. Sentado ali naquela cozinha após mais um dia de aula sofrível em que tirei notas ruins e me senti humilhado quando a professora propôs um passeio no mês que viria ate a cidade vizinha, mas fez um parêntese (olhando diretamente pra mim) que quem não tivesse condições de arcar com o custo não se preocupasse que a escola cuidaria de tudo.
Sentado ali lembrando da expressão nos olhos dela, lembrando de todos aqueles olhos voltados pra mim, garotos e garotas entre 14 e 16 anos me fitando como quem olha uma curiosa forma microbiana no microscópico eu senti o mais puro e incontrolável ódio de toda a minha vida.
Eu quis morrer na sala de aula naquela maldita tarde, eu quis morrer, mas não sem antes arrancar aqueles olhos um por um dando especial atenção aos olhos da professora.
Voltei pra casa calado à mente zumbindo em ondas crescentes, ignorei a todos no caminho, ignorei os poucos amigos que tinha, pobres diabos como eu em sua maioria, minha irmã foi inteligente o bastante pra voltar calada a meu lado, era petulante e provocadora, mas não era besta viu logo o ódio no meu olhar se ficou na sua.
Em casa minha mãe estava ocupada lavando roupa pra sei La quantas pessoas meu pai estava no trabalho como sempre, no fogão nosso almoço, arroz com feijão e salsicha ela nem notou nossa chegada, eu não comi, joguei a mochila no quarto e sai de novo pra rua, em frente a nossa casa em um terreno baldio já pontilhado de lixo havia uma arvore, não sei o que ela era, mas eu subia nela quando precisava de solidão.
E naquela tarde eu precisei mais do que nunca!
Perdi a noção do tempo empoleirado La, imaginando mil formas violentas de responder a professora e a todos aqueles merdas da escola, uma forma de responder ao mundo inteiro.
Sangue dor e enxofre em minha mente.
E acima de tudo vergonha.
Quando desci de La já escurecera meu pai já estava em casa e ninguém como sempre dera por minha falta, ele trocou poucas palavras com minha mãe e ainda menos comigo, estava já de banho tomado, mas tinha hálito de cachaça, meu pai jamais ficara bêbado nunca o vimos sequer mais alegrinho, mas não dispensava uma dose diária no boteco, imagino que era sua forma de suportar a vida que vivia! Eu não culpava!
Mas ver aquele homem rotundo de barba por fazer e cheiro de bebida sentado no sofá da sala vociferando contra o noticiário não conseguia me encher de orgulho.
Naquela tarde senti náuseas.
Belisquei o jantar (o mesmo almoço requentado) e apenas por o desperdício de comida ser sacrilégio entre nós minha mãe questionou-me sobre eu não estar comendo. Resmunguei que estava sem fome e o assunto não foi longe.
Meus pais foram pra cama cedo como sempre, minha irmã certamente preparou-se para nossa disputa de todas as noites sobre quem veria o que na TV, mas eu não queria ver nada, fui sentar na cozinha sozinho, pude ver no olhar dela a uma vaga nota de preocupação, mas a TV seria toda dela e isto e que importava.
Não sei ao certo como o tempo passou, apenas fiquei La sozinho espiando a lua pelo janelão rachado da cozinha ate não mais ouvir a TV e ainda estava La muito depois disto. Vendo e revendo minha vida, e sempre voltando ao mesmo pondo em que a professora me garantia que os miseráveis também poderiam passear.
Eu apertava com tanta força um copo em minha mão que quase o quebrei, só me dei conta de que chorava quando as lagrimas começaram a empapar minha camiseta.
Chorei calado naquela cozinha infernal por muito tempo. Quando o dia nasceu eu já havia tomado uma decisão.
Calado mas sem particularmente me preocupar se acordaria alguém fui ate o quarto e tirei da mochila os cadernos e livros, pus roupas a esmo dentro dela debaixo do meu colchão peguei minhas economias, dinheiro ganho em pequenos serviços a vizinhos, moedinhas achadas na rua, cada maldito centavo que eu podia segurar, e que ainda assim mal davam 30 reais.
E sai da casa caminhando rápido quase correndo.
Eu ia embora, ia pra qualquer lugar não importava nem sabia onde, mas eu ia.
Ia botar pra foder no mundo, matar ou ser morto se precisasse.
Mas nunca mais filha da puta algum ia me olhar com piedade nos olhos a menos que quisesse ficar sego depois.
Eu só sabia que tinha que fazer isto longe de casa.
No caminho para a estação rodoviária passei pela igreja, o dia já ia algo e ela estava aberta.
Não resisti, entrei, caminhei ate o altar estava sozinho, tudo quieto, fiquei cara a cara com Jesus em sua cruz, por um tempo só olhei pra ele, o filho de Deus, ou era o pai? Ou era ele o próprio Deus sinceramente eu não via a diferença, e num rompante incontrolável sem ligar para quem quer que pudesse me ouvir eu berrei minha pergunta pra estatua do messias.
- Porra pra que tu me pôs nesse mundo hem? Que merda do caralho ta tentando me provar?
Chafurdar na bosta destes filhos da puta endinheirados é pra ensinar o que?
Aguardei uns 5 minutos olhando pra Jesus punho ainda erguido mão apertada esperando minha resposta.
Ele não respondeu no que me dizia respeito era provável que nem tivesse ouvido, ate onde eu sabia ele nem ligava. Sai da igreja e fui direto a rodoviária. Chegando La escolhi o lugar mais longe em que meu dinheiro dava pra pagar e comprei a passagem.
Sentado no terminal aguardando a hora de sair eu observava as pessoas, velhos e jovens, homens, mulheres, mães e pais e crianças caminhando pra La e pra Ca barulhentos como insetos numa caixa.
Não muito longe de mim eu via uma prostituta insinuando-se para um cara, ela o deixava olhar a vontade seu decote e não ligava que ele metesse a Mão a vontade nela, era dia claro já, mas a puta ainda sim tinha que ganhar o seu pra comer.
Meu ônibus encostou, era muito velho e pintado num amarelo descascado que um dia fora amarelo ouro. O motorista desceu e anunciou que o ônibus saia em 10 minutos.
Agora faltava pouco.
Mas comecei a sentir cheiro de cagada.
Como na famosa situação em que a vida toda passa diante dos olhos eu revi a minha de novo. E o cheiro de cagada só aumentava.
Comecei a pensar no monte de cagadas que tinha feito ate ali.
E no monte de cagadas que eu ainda podia fazer.
E na cagada maior pra onde este ônibus ia me levar.
La pra onde eu não teria guarida nem pátria.
Eu me sentia chafurdando na merda
E estava prontinho para buscar uma quantidade maior onde me enfiar.
Era forte muito forte o cheiro da cagada.
O ônibus amarelo saiu no horário.
Eu não peguei.