Soturno
O medo, bactéria proliferada no interior de cada um deles, percorrendo o sangue, chegava ao coração de um, intensificando as pulsações, ou aos olhos de outro, transbordando lágrimas, ou aos pulmões de alguns, insaturando respirações.
Do lado de fora, o vento havia ameaçado as árvores, e agora as surrava raivosamente, para que aprendessem a não subestimá-lo. O céu bradava, com seus berros, as piores maldições contra a humanidade, e ameaçava metralhar sobre todos sua munição incolor. Os cães proclamavam em coro seus cânticos ritualísticos, invocavam a meia-noite, que a qualquer momento poderia emergir sem a menor previsão do quanto duraria. Aquela varanda que antes os abrigava, agora os engolia, e não sabiam ao certo se seriam por ela totalmente digeridos ou se em algum momento ela sentiria náuseas.
José, na angústia dos nove anos, queria estar preparado para reagir quando a mão da morta-viva brotasse do piso para puxá-lo. Tereza, na valentia dos treze, ameaçava por telepatia a bruxa que sobrevoava as ruas da cidade em busca de crianças. Pedro, na geleira dos dez, mantinha-se impedido de reagir por alguma força transcendental, e aguardava imóvel o momento em que a mulher vaporizada viria a seu encontro, prometera-lhe ela que o faria. Leila, no tremor dos onze, mal via a hora de rugir na varanda de casa o lobisomem, para que lhe mostrasse que, entrando e trancando a porta, não seria ela seu alimento naquela noite. De todo aquele mundo paralelo, simultâneo, inacessível e acessível ao mesmo tempo, por eles criado e deles escapado, poderia fugir qualquer uma daquelas criaturas. Eles bem o sabiam.
Mas a pior das criaturas incorporou-se em um homem alto de olhar profundo, ameaçador, objetivado, que pairava imóvel por um segundo – discorrido em horas – no portão do jardim. Um homem de carne e osso, mas cuja figura deixava claro que não pertencia àquele mundo. Quando menos esperavam, ele estava presente, na entrada da varanda, a olhá-los. Pretendia pô-los dentro da mochila que carregava e levá-los a algum lugar, onde deceparia suas cabeças para serem servidas em tigelas de barro.
Pressionando um botão na parede, o indivíduo não só acendera as duas lâmpadas que se encontravam de espreita ao teto, prontas para dar o bote, como também provocou na varanda aquela náusea que tanto esperavam. As crianças foram vomitadas para dentro de casa, restando apenas Pedro, que havia demorado demais para mover-se dali. A epiglote de madeira tapou-lhe a passagem e deu-lhe a certeza de que seria completamente dissolvido naquele estômago ácido.
O curtamente longo caminho de fuga daquele gado que, numa noite, ouvia os rosnares de quem o perseguia foi da sala de estar ao quarto dos fundos, passando por um escuro corredor, cujas paredes possuíam uma força sobre-humana de amolentar passos, enfraquecer pernas, causando em Tereza desistência e derrota. Ela olhou para trás e mirou os olhos do homem, que havia atravessado a porta de casa e caminhava em sua direção. Olhos de Medusa como eram, transformaram-na em pedra, não pôde mais acompanhar os demais, que já se trancavam em seu esconderijo – o dormitório, desconsiderando quem ficava para trás.
De portas e janelas trancadas, abraçados e trêmulos, Leila e José ouviram, desesperados, a fechadura da porta despedir-se deles, anunciar-lhes que chegara a hora, que aquele era o fim. O terror que se apoderava de Leila fê-la sentir um mal estar profundo, embrulhar o estômago e empurrar todo o alimento deste à boca, convertido em um som estridente; expelido sem que ela pudesse conter, ecoou por toda a casa, talvez por toda a vizinhança.
Abriu-se a porta. A primeira vista foi a de Gustavo, o pai daqueles quatro meninos, um homem alto, de olhar profundo, ameaçador, objetivado, que voltava tarde do trabalho. Seus olhos faiscavam e sua boca rangia. Ao seu lado estavam Pedro e Tereza, quietos e cabisbaixos.
– O que fazem acordados a essa hora?
Todos os monstros haviam ido embora, expulsos pelo pai, que não admitiria a ninguém mais além dele atemorizar seus filhos. Agora, o medo não era mais de qualquer coisa vinda do além, era, sim, do castigo que receberiam de um ser nativo daquele mesmo mundo em que eles viviam.