Silêncio de séculos

Silêncio de séculos

Era conhecida pelas empresas funerárias. Figura presente nos velórios. Fossem de pessoas idosas ou de mais jovens, lá estava ela. Como poderia ter se acostumado com aquele ambiente triste, com pessoas controladas e outras histéricas em suas manifestações? – Indagavam os trabalhadores dessas empresas. Talvez sofresse de uma profunda solidão e por isso comparecia aos velórios porque era o lugar onde se sentia aceita – ficavam a conjecturar. Velórios discretos e outros ornados com crucifixos, anjos, muitas flores... Em alguns, até serviam comidas e bebidas. Hábito ainda existente em algumas comunidades – sabia disso. Percebia diferenças quando os familiares e amigos do falecido eram religiosos ou não. Quando evangélicos, ouvia-se muitos cânticos e reflexões. Como tinha conhecimento dos velórios, não se sabe.

De vestes pretas, lenço cobrindo a cabeça, um ar triste e um olhar distante. Não se ouvia choro nem o balbuciar de qualquer palavra. Não cumprimentava ninguém e também não era cumprimentada. Bastante discreta, mantinha-se a certa distância do caixão.

Não se sabia de quem se tratava. Não era conhecida dos amigos e familiares dos mortos, mas ninguém ousava perguntar a razão da sua presença, embora a olhassem com espanto. Poderia ser alguém ligado ao falecido, sem que se soubesse. Outros questionamentos vinham à mente dos presentes. A sua meia-idade ainda revelava alguns atributos físicos. O vestido preto, longo, e o tradicional lenço na cabeça, encobrindo parte da face, escondiam o que poderia ser mostrado de seus possíveis dotes de beleza. Os funcionários da funerária, no entanto, a reconheciam.

Terminados os rituais próprios dessas ocasiões, desaparecia tão misteriosamente quanto surgia. O pessoal da funerária, no entanto, pressentia que voltaria a vê-la.

E assim foi. Encontraram-na em outro velório. Lá estava ela com as mesmas vestes. Só que dessa vez estava em pé, ao lado do caixão, olhando fixamente para o morto, podendo-se ouvir um contrito choro. Cena que durou alguns minutos. Depois se retirou. “Por que foi diferente desta vez?” - Perguntavam entre si os funerários, sem obterem resposta.

Decorrido algum tempo e alguns velórios mais, a misteriosa figura não mais apareceu. Os que a viam com certa frequência ficaram a imaginar o que poderia ter acontecido ou se teria abandonado o estranho hábito de se fazer presente nessas ocasiões.

Um dia uma empresa funerária foi chamada para providenciar o sepultamento de uma indigente, fato que acontecia com certa frequência. As despesas eram custeadas pelo poder público. Chegando ao local, verificaram tratar-se da misteriosa senhora que frequentava os velórios. Não havia ninguém. Nenhum parente, nenhum amigo. O ambiente não era de tristeza ou de qualquer outro sentimento. Nunca haviam se deparado com algo assim. Foi quando um dos funcionários sugeriu que fossem chamadas algumas pessoas que, por acaso, estivessem passando pelo local, para que participassem do funeral. Conseguiram convencer algumas, condoídas com a situação.

Aconteceu o ritual, inclusive com a participação de um pastor que visitava a região e era conhecido de alguns, e que se dispôs a trazer uma breve reflexão, após o que, foi o corpo levado para o sepultamento.

Não houve choros nem lamentos. Mas podia-se ouvir um silêncio de séculos, como se todos os que morreram e foram por ela velados, estivessem presentes.

Paulo Salles