Goteiras Da Estação
O tempo não para pra esperar
Quem quiser viver tem que correr
Pra colher amor tem que se plantar
E deixar os sonhos florescer
Somos viajantes do destino
Deixando marcas pelo caminho
Às vezes ficando às vezes partindo
Foguinho, menino de olhos miúdos, canela seca. Tão mirrado, que parecia não comer. Ninguém sabia onde ele morava, nem que idade tinha, mas ele estava sempre por ali nas mediações da estação rodoviária de Goiânia. Andava nas pontas dos pés, subindo e descendo as ruas, feito um foguetinho incandescente. Quando alguém lhe perguntava o nome, ele respondia: “Foguinho, seu João e dona Maria! Foguinho, dona Sebastiana e seu Amaro! Foguinho, pro vovô e pra titia!” Foguinho vivia no meio de outros meninos, sua figura destacava-se dos seus inseparáveis companheiros. Renatinha era o xodó, com seus cabelos anelados, mal penteado, de olhos azuis e penetrantes, sua presença era quase invisível. Assombroso o mais velho entre eles. Era alto com duas falhas de dentes na boca. Sua pele era encardida, cinzenta, ele parecia um tijolinho ambulante. Ranzinza, não era de muita conversa. Irritava-se com o menor rumor. Contava que em casa sua existência era triste. Quando não apanhava para comer, apanhava para não comer. A mãe era uma criatura intragável, azeda e sem graça; o pai, que se empenhara nas jogatinas e nos botecos, apesar de novo, vivia sempre bêbado, nos dias que dava o ar da graça em casa, o espancava. Por fim Gulão, que a sua única distração era comer. Ou falar das guloseimas que ainda não tinha experimentando. Ele ficava horas e hora enfrente as estufas das lanchonetes da estação, na esperança de ganhar salgados e doces. Vendo-o assim tão resignado e tão sujeito, alguns viajantes lhe ofertavam algo para de comer. Sovina, Gulão comia quase tudo! Deixando pouco para os amigos, seu estômago parecia esticar para receber mais comida. Dos quatro era o único que voltava para casa no fim de tarde. Quatro vidas! Quatro sonhos individuais. Que se ligava a um só o Foguinho, que apaziguava as brigas entre eles, e repartia a comida, que por ventura ganhava.
Às vezes olhando, eu tinha a impressão de que todos eles eram bons em alguma coisa e não sabia dos seus poderes. Naquele tempo eu já estava com meus quarentas anos. Minha lojinha de conserto de sapatos e malas era modesta, simples e aconchegante. Ficava num ponto estratégico da rodoviária, o que me permitia olhar toda a movimentação, tanto dos passageiros quanto dos meninos. Dia pós dias, eu os observava, em suas particularidades que me chamava atenção. Certa manhã, ao abrir loja, eu avistei Renatinha, sentada num banco ao lado de um homem. Aquilo me causou estranha sensação, porém logo chegaram Gulão e Assombroso, então fiquei mais despreocupado. Sempre pensei que meninas não deviam ficar com meninos, mas a lei das ruas eram outras. E quem poderia dizer o que se passava durante a noite quando as portas das lojas fossem baixadas. Foguinho como era de praxe demorou aparecer, mas como de costume, chegou! Esbanjando sorriso e dando ordem aos colegas.
A rotina era a mesma na estação, gente chegando, gente partindo, e os meninos por ali ficando. O tempo prometia chuva, um verdadeiro temporal se armava. Não demorou muito e os primeiros pingos começaram a cair. Como a maioria das construções da cidade a estação rodoviária aquela época era derramadeira, havia goteiras por todos os boxes. As pessoas se espremiam para agasalharem do vento e da chuva que era muito forte! Meus olhos acompanhavam o vai e vem intermitente dos passageiros e dos meninos. Foguinho, Renatinha, Gulão e Assombroso, ficaram encolhidinhos e grudadinhos uns aos outros que dava pena ver. Foi então que percebi naquele momento o que era ter amigos. Não, não sou invejo. Também não ligo muito para isso. Pensei ter uma infância difícil, mas a daqueles meninos era mais penosa do que a minha outrora foi. Não sinto pena nenhuma de mim. Nunca na vida corrida que tinha, eu parava para observá-los, mas aquele dia chuvoso, de pouco serviço pude ver melhor a verdadeira amizade. O mais bonito era ver os quatro juntos; todos comentavam a junção deles em um só. Algumas velhas matronas passavam e torcia a cara com reprovação, outras enchiam os olhos de lágrimas cheias de compaixão. Aquilo foi me cortando por dentro, como se uma navalha afiada dissecasse meu coração. Vendo aquele quarteto se aconchegando, era uma imagem totalmente surreal. Sinceramente não sei o que se passava no espírito dos meus colegas da estação, mas o meu transbordava. Corri peguei minha velha maquina Kodak e tirei uma foto dos quatro naquela posição fraternal.
Quando a chuva deu uma trégua. E o vento soprava mais brando, eles foram se separando. Cada um foi fazer o que de melhor sabia. Contudo, Foguinho me chamou a atenção. Na velha estação rodoviária havia varias goteiras, e como aquele tempo não existia a figura dos faxineiros, vendo que as poças de água por si só não enxugava e as pessoas de idade quase caiam. Foguinho correu no banheiro e pediu ao velho Geraldo, um rodo e um pano. E pacientemente começou a enxugar as poças d’água. Uma a uma as poças foram secas. Contente o velho Geraldo lhe deu uma nota de cinco cruzeiros. De longe percebi o contentamento do Foguinho, que saiu pulando e agradecendo. Comprou um lanche e chamou os três amigos para comer com ele. Foi assim que sorrateiramente, que comecei a arquitetar um plano de aproximação com aquele quarteto. Teria que ganhar a confiança do líder, esse líder era Foguinho. De noite na cama, eu era um pensador! Pensando, pensando. Havia uma conspiração inconsciente ou mesmo consciente em que buscava deliberadamente algo para ajudá-los. Não contive o riso quando a idéia finalmente chegou. Ainda hoje posso ver tudo como num filme em flash back na tela das minhas lembranças. Acordei decido a ver de perto aqueles meninos. E tinha alguma chance a meu favor. O dia amanheceu com um sol esplendoroso, radiante estampado num céu de profundo azul. Estacionei meu carro na minha vaga costumeira. Mas algo me chamou a atenção.
Um alvoroço de gente se acotovelando em volta de algo ou alguém. De repente, tomado de uma insanidade tive pressa em chegar. Com minhas mãos e braços fui abrindo caminho naquele aglomerado. Cinco minutos depois estava eu lá, diante daquele corpinho miúdo. Assim como eu Renatinha abriu caminho entre a multidão. Ao deparar com a cena trágica, seus olhos, por sua vez foram mudando de feição, ou mesmo transfigurando em contornos de pavor. Como que se revestisse seu mirrado corpo com uma armadura de heroína e munida de um poder extraordinário, começou a gritar espantando seus monstros. Guardo até hoje a primeira pagina do jornal local com a manchete: “Menino é encontrado morto na estação rodoviária de Goiânia.” Foi nesse dia ao som do estrondo da perda, que minha cabeça se ergueu. Contrariando a opinião de todos tomei uma decisão. Adotei aquele trio no meu coração in memória de Foguinho, que tanto fazia para tê-los unidos. Briguei com os pais de Assombroso, que Hoje se chama Wander. Renatinha esperou a morte da Avó e veio morar comigo também. Apenas Gulão não veio morar conosco, pois seus pais não deixaram, contudo ele ficou muito amigo da gente. Ainda hoje relembrando esses acontecimentos vejo a foto daquele quarteto fantástico, e choro amargamente de arrependimento em não ter me aproximado de Foguinho naquele dia de tempestade, enquanto ele enxugava as goteiras da estação.
Hoje os olhos desse velho sapateiro são como as goteiras da estação. Pingam sem parar. Lentamente essa necessidade de encher a imaginação apoderou-se de mim. Busco nos parcos sentimentos a referencia do que hoje seria Foguinho. Crescendo com uma ideologia, com sua alegria. Mas a mão do destino balançou o berço dos acontecimentos diferente. Quisera Deus que ele fosse apenas um pequeno mártir, para a salvação dos amigos que por cá ficaram. Quem dera hoje Foguinho enxugando as goteiras dos meus olhos. Em minhas noites insones, ainda ouço a resposta dele, quando alguém lhe perguntava o nome.
“Foguinho, seu João e dona Maria! Foguinho, dona Sebastiana e seu Amaro! Foguinho, pro vovô e pra titia!”