A rua clara, a rua escura
Eram duas ruas
A clara e a escura
A clara era bonita, a escura feia
Aberta era a clara, e dela tudo se via
Fechava era a escura, e pra cima ela seguia
Eu na rua clara sonhava, na rua escura, sofria
Na clara tinha fartura, na escura miséria
Na rua clara eu vivia, na escura, eu tremia
Gente da clara tinha medo da gente escura
Os da escura tinham ódio, talvez da rua, só porque ela era clara
Eles não se misturam, ah, não mesmo
A rua clara tinha praia, infinitesimais
Na rua escura tinha desgraça, de homens e animais
Em rua clara as crianças tinham bochechas rosadas, em escuras eram negras, da cor da sujeira
Entre as duas havia um portão
Portão de ferro e aço
De muitos metros de altura
De um braço de espessura
Gente da Clara podia passar, mas não se atrevia
Gente da escura queria atravessar, mas não podia
Se da clara ousasse, era perigoso
Se da escura tentasse, era encarcerado
Na rua clara me apaixonei por uma mexicana de cabelos negros
Na rua escura, eles procriavam, como porcos e coelhos
Um dia eu cruzei de um lado ao outro
Fui na rua escura, sei lá fazer o que.
Vi gente morta, vi gente que morria
Vi gente sedenta, vi gente que bebia - do suor do próprio corpo - para ter do que comer
Vi lixo, vi vômitos, vi barrigas grandes, vi pernas finas
Vi queixo quebrado, vi a calçada que se partia
Vi escadas que davam ao nada
Vi o nada que dobrava a esquina
Vi traição, vi doença, vi senhores feudais
Vi o glamour da rebeldia,
Vi menino de punho fechado, me olhando de soslaio
Vi apelo, vi sangue,
Vi a cruz no alto do monte.
Ela brilhava em dias de festa, com fogos de artifícios atingindo as têmporas
Na rua escura tentaram me agarrar, a mim e minha mexicana
E me tirar o que eu trazia, imaginem
Corri até a rua clara, onde violência não havia
O portão se fechou, mas um deles passou
Foi açoitado e preso, e tratado como verme
As madames olhavam assustadas, as crianças corriam,
Criatura horrorosa, de onde vinha?
Da rua escura, sussurravam.
Na rua clara a sirene então gritou. O toque de recolher. A felicidade continuaria, na manha seguinte, quando o sol reinasse entre as princesas do mar.
Dormi em cama de madeira, com minha mexicana, bela latina.
Que doce aroma de Acapulco
Havia um portão
Entre a rua escura e a rua clara
Havia um portão de ferro e aço
De muitos metros de altura
De um braço de espessura
Gente da Clara podia passar, mas não se atrevia
Gente da escura queria atravessar, mas não podia
Mas eu passei um dia, para ver por cima das nuvens
Tentei enxergar salvação.
Sinto muito, rapazes. Mas desta vez, não
Vou voltar pra minha mexicana
Na rua clara
Na rua vazia
Daniel Gonçalves