O sonho nu

Era uma vez um sonho. Ele não tinha asas, e se achava pequeno e fraco. Era um sonho tímido, retraído e não gostava de aparecer. Mas ele existia, ele estava lá.

Ele estava lá. Lá naquele lugar mais profundo que um sonho poderia estar. Os dias passavam, e ele apenas assistia a todos os outros sonhos levantarem, saírem, arrombarem portas, derrubarem obstáculos e realizarem.

E ele continuava lá. Lá no fundo. Nu.

Ele não entendia como tantos outros sonhos poderiam ser tão atrevidos! Alguns sequer sabiam andar sozinhos, mas pegavam carona com os outros, vestiam-se com as vestes de outros, mas saíam. Sim, saíam dali.

Mas o sonho nu rejeitava vestes alheias, e também não tinha coragem de revelar sua nudez. E por isso, timidamente, preferia ali continuar.

Os anos passaram, tantos outros sonhos se realizaram e o sonho nu no mesmo lugar continuava. E agora, além de nu, tímido e pequeno, ele também se achava velho e ultrapassado, não via motivos de se realizar. Afinal, quem daria importância à realização de um sonho idoso, pequeno, tímido e nu? Seria mais prático e menos doloroso terminar os seus dias de solidão, estacionado em um lugar de onde nunca saíra.

Um belo dia, e digo belo não por ser um dia de primavera, ensolarado, sem nuvens no céu, com pássaros a cantar, não. O dia era belo porque o sonho nu acordara diferente.

Naquele belo dia, o sonho nu acordara sentindo-se renovado. Achou aquilo um tanto estranho.

- Onde já se viu um velho nu e tímido como eu, acordar com pique de garotinho? Até me envergonha.

O sonho nu, resistente àquela mudança inesperada em seu interior, mais uma vez reluta em dali sair.

- Esquece, deve ser caduquice.

O que o sonho nu não sabia, era que o seu hospedeiro, pela manhã, havia deixado a porta entreaberta. Não era necessário arromba-la, tarefa pouco fácil para um sonho tão idoso.

Diante de tamanha facilidade, o sonho nu resolveu espiar o lado de lá, e pela primeira vez quis sair do lugar onde havia passado todos aqueles anos.

O sonho nu, ainda muito tímido, se depara com uma paisagem jamais vista e fica atônito. Em um lago cristalino ele viu pela primeira vez o seu reflexo. Espantoso.

Foi então que o sonho nu descobriu que era nu mesmo. E era uma nudez tão pura, tão sublime que seria desperdício querer escondê-la. A nudez do sonho era como a pureza de uma criança. Era divina. Era imaculada. Era única.

O sonho nu pode comprovar que era mesmo pequeno, como sempre achou que fosse, mas descobriu que a vantagem de ser assim, é que sempre coube em qualquer pedacinho, sem ocupar grandes espaços, sem incomodar ninguém, nem os demais sonhos que com ele dividia lugar.

Pela primeira vez o sonho nu teve a curiosidade de querer realizar-se só para ver qual seria o tamanho de sua realidade e qual forma poderia tomar. Sim, o sonho queria se realizar.

Mas, o que mais surpreendeu o sonho nu ao ver seu reflexo no espelho d’água foi perceber que, mesmo tendo passado todos esses anos e que mesmo se sentindo velho e cansado, continuara jovem, sem rugas, sem rabugices.

Foi aí que o sonho nu aprendeu (e ensinou) a lição mais importante de sua vida:

Um sonho nunca envelhece, seja ele pequeno ou grande, tímido ou atrevido, nu ou vestido.

Um sonho sobrevive a todos os desafios, todos os obstáculos, todos os contratempos de uma vida.

Hoje, o sonho nu, mais jovem do que nunca e já não tão tímido, está por aí, cheio de si, se realizando e fazendo alguém, muito, mas muito feliz, e por onde passa, deixa a certeza de que os sonhos nunca envelhecem, e o que nos deixa velhos, é não sonhar.