ALMÔNDEGAS GELADAS

Socorreu o estômago com as almôndegas geladas que restaram do jantar de ontem. Folheou a correspondência desinteressante que o porteiro entregou-lhe ao chegar. Dentre os envelopes achou um papel amassado que lhe chamou a atenção. Desdobrou-o e leu: “posso salvar sua vida – Ângela – AP. 115”.

Amassou o papel e o atirou no cesto de lixo. Foi tomar um banho. De lá escutou o telefone tocar. Por três vezes. Desistiram na quarta tentativa. Saiu do banho no exato instante em que as luzes piscaram. A energia caiu. Ouviu barulho de um gerador sendo acionado automaticamente. As luzes voltaram. “posso salvar sua vida – Ângela – AP. 115”.

O elevador abriu a porta. Entrou e cumprimentou a estranha mulher que mantinha um capacete enfiado até a altura das orelhas e que deixava o rosto à mostra. Constrangeu-se, pois ela pareceu ignorar solenemente o cumprimento. No térreo saltou à frente dele quase fechando-o junto ao painel eletrônico que indicava o número dos andares. Deixou para lá a má educação da desconhecida.

Apanhou um táxi para o endereço que pretendia visitar. Irritou-se com um olho de vidro de cor vermelha que estava pendurado atrás do espelho retrovisor e balançava como um pêndulo desgovernado. Não conseguia enxergar nenhuma utilidade aparente naquilo. Ao final do trajeto pagou pela corrida. Apontou para o penduricalho e fez uma oferta. Para seu espanto o taxista aceitou. Enfiou-o no bolso.

O cliente o recebeu cordialmente e ouviu com atenção a proposta detalhada que ele apresentou. Fez perguntas, ponderações, simulou diversas situações e hipóteses, coisas bem típicas de quem está comprando uma apólice de seguro de vida. Ele, como sempre, procurou ser o mais didático que pode. Assinaram o contrato e ele apanhou o dinheiro passado num envelope. Fugia do padrão. Discretamente passeou o olhar pelo ambiente. No banheiro notou que havia uma figura feminina de cabelos cor de laranja. Na pia, um capacete. Ao despedir-se do cliente, leu de relance num pedaço de papel sobre a mesa: “posso salvar sua vida – Ângela – AP. 115”.

Voltou para casa quando a tarde findava. O céu era uma gelatina alaranjada colorindo o ocaso. Entrou no elevador. Pensou por instantes e apertou o botão do décimo primeiro andar. Apertou a campainha do 115 sem saber muito bem o que esperar. Aguardou. Após um tempo de silêncio, girou a maçaneta. Não demonstrou surpresa com a porta destrancada e menos ainda com o corpo de uma mulher estendido no chão da sala.

Ainda havia tempo de sair sorrateiramente, descer as escadas e voltar para seu apartamento a tempo de ver o noticiário local enquanto arrematava as derradeiras almôndegas. Enquanto se decidia teve a atenção despertada pela espuma escura que saia do lado esquerdo da boca da mulher caída. Viu dois copos plásticos sobre a mesa. Ambos com restos de algum suco. Passeou o olhar pela sala. Localizou um aparelho de celular próximo ao sofá. Apanhou-o e bisbilhotou seu conteúdo. Apesar da baixa resolução, interessou-se pela última fotografia: alguém de costas, com capacete até a altura das orelhas e segurando uma apólice numa das mãos.

Desta vez resolveu abandonar o local. Com respiração alterada, olhou para o corpo mais uma vez, afastou-se, puxou a maçaneta e fechou cuidadosamente a porta, limpando as digitais. Olhou para a plaquinha com o número da unidade e pareceu ver escrito “posso salvar sua vida – Ângela – AP. 115”.

Cleo Ferreira
Enviado por Cleo Ferreira em 03/10/2013
Código do texto: T4509239
Classificação de conteúdo: seguro