O Minhocas 2ª parte

O Matacão era a sombra do Minhocas. Desde a primeira emboscada, nasceu entre ambos uma amizade, a ponto de nunca mais o Minhocas dar um tiro, sem a presença do amigo, para o que desse e viesse.

- Se eu não os conhecesse, eu até pensaria que eles eram maricas, onde está um está o outro, eu nunca vi uma amizade como aquela.

- É verdade meu Alferes! – Responde o Furriel do pelotão os minhocas. Alcunha orgulhosamente assumida, por todos os membros do pelotão.

- Aqui há dias, o 22 vira-se para mim a sorrir e diz: «Ó meu Furriel, este gajo não pode andar sempre atrás de mim. Já viu! Com este corpanzil, os turras detectam-no ao longe e eu ainda me lixo».

- Só queria que tivesse visto, aquele homenzarrão com lágrimas nos olhos a pedir por tudo que não lhe fizesse isso, que tinha começado por ser uma dívida de gratidão mas que agora ele era mais que um irmão e que se fosse preciso era capaz de dar o seu braço direito. Foi difícil, o 22 convencer o amigo que estava a brincar. É assim a amizade entre estes dois homens, capazes de dar a vida um pelo o outro.

- O mesmo braço com que amarfanhou o turra, que ele pegou à unha, naquela espera que lhes fizemos?

- Esse mesmo, meu Alferes, esse mesmo. - Disse o Furriel a rir.

A vida daqueles soldados era cada vez mais difícil. O abastecimento de Guilege, sem o apoio da Força Aérea que há mais de dois meses não voava naquela zona, tornava-se uma operação muito complicada. O próprio abastecimento de água era dificultado com bombardeamentos do lado de lá da fronteira.

A 18 de Maio, o aquartelamento sofre o maior ataque que alguma vez aqueles homens presenciaram. Já não era só da fronteira, o fogo surgia de todas as direcções, impossibilitando qualquer movimento fora dos abrigos. O depósito de mantimentos foi dos primeiros edifícios a desmoronar. A população aproveitou o facto para se abastecer com as rações de combate espalhadas por todo o lado, a antena de rádio assim como as instalações ficou arrasada. O bombardeamento continuou durante três dias e quatro noites. Viveram-se dias de pânico. Sem comunicações, Bissau (capital da Guiné) não sabia o que se passava, daí, não se contar com qualquer tipo de socorro. As condições nos abrigos, aonde a população também se abrigou com as crianças que ali faziam as suas necessidades, eram de um cheiro só suportado pelo terror de meter a cabeça de fora. Sem água, sem comida, só com munições para o caso de um assalto ao aquartelamento, o que parecia estar eminente. O comandante Lima, tomou então a mais difícil resolução que alguma vez teve de tomar: abandonar Guilege.

Eram três da madrugada do dia 22 de Maio de 1973. O comandante dá ordens para o pelotão de artilharia atirar com tudo que tinha, dando assim cobertura à evacuação. Ficaram só o pelotão de artilharia e os Minhocas que se iriam juntar ao resto da coluna, após terem disparado todas as munições que restavam. Foram quatro horas de bombardeamento que confundiu o inimigo e possibilitou que a imensa coluna de militares e população pudesse chegar a Gadamael, por um trilho paralelo à pista. Para traz ficavam as viaturas, os bens pessoais, as armas pesadas e 10 anos de guerra e muito sangue derramado no controle da guerrilha. Caminhavam em silêncio, escoltando a população que seguia em fila indiana, intervalados dois a dois por soldados, para melhor protecção em caso de ataque. Levavam unicamente armas ligeiras e um grande peso, o peso da vergonha e tristeza de não terem conseguido manter aquela posição. Posição, pela qual outros antes deles tinham dado a vida. De sentirem que nada voltaria a ser como antes. Agora, o inimigo poderia movimentar-se à vontade entre a fronteira, onde tinha as suas bases e a zona sul da Guiné.

Vinte anos mais tarde. Um almoço de confraternização entre ex-militares que fizeram tropa em Guilege, tinha dois convidados especiais: um era o comandante na altura, o Major Lima, outro era o 22 que emigrara para o Canadá e nunca pudera comparecer a estes almoços. Agora finalmente viria, conforme garantira o camarada Matacão que mantinha correspondência com o amigo Minhocas.

Havia uma grande expectativa perante os familiares dos ex-combatentes em conhecerem o tal minhocas, de quem os pais falavam com tanta admiração.

Mal rompeu na sala José Inácio, com a sua Rosa e os seus dois filhos, são rodeados por antigos colegas e familiares destes, na ânsia uns de o abraçarem, outros de saciarem a curiosidade. Aos poucos a ordem restabelece-se e após o almoço lembram-se histórias daqueles tempos e um poema por todos aqueles homens conhecido:

Em Gadamael Porto.

A gente pensa que não volta.

Cada carta é um adeus.

Em cada carta se morre.

Cada carta é um silêncio e uma revolta.

Em Lisboa como dantes, isto é, a vida corre.

Em Gadamael a gente morre.

Emocionado, o Comandante com a taça de espumante na mão, propôs um brinde.

- Meus senhores!.. Quero com orgulho beber à vossa saúde e dizer-vos que foi uma honra para mim, servir a Pátria com tais militares. Quero também homenagear em particular, um de entre vós, pela coragem, pelo espírito de sacrifício pela camaradagem e outros atributos que por demais vos são conhecidos. É com muita honra que brindo a um dos maiores soldados, senão o maior, que na minha carreira de militar tive o orgulho de comandar: o nosso camarada Minhocas.

A Rosa olhando com ternura para o marido via nele um gigante e não o ferricoque dos tempos de solteira.

Lorde
Enviado por Lorde em 28/09/2013
Reeditado em 28/09/2013
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