O Minhocas

José Inácio Fernandes: Apurado para todo o serviço militar.

Uma forte palmada nas costas, fez com que o José desse um passo em frente, para compensar o desequilíbrio, ao tempo que ouvia. - Temos homem, carago! - Grita um dos rapazes em frente da lista, onde constavam os nomes dos mancebos apurados para o serviço militar.

- Ah grande Minhocas! Também foste apurado tal como todos nós.

Pela primeira vez, o José Inácio não se importou com a alcunha de Minhocas, de tão contente que estava por ser apurado. Afinal não era nenhum aleijado, ia para a tropa como os demais. Era certo que media pouco mais de um metro e meio e os quarenta e nove quilos de peso faziam-no destoar do resto dos rapazes, daí a alcunha de minhocas, que já vinha do tempo da escola. Apesar do seu aspecto frágil, tinha saúde e no trabalho não ficava atrás de ninguém. Mas como gostaria de ser mais alto e não ter de ouvir a alcunha constantemente, como se não tivesse nome de baptismo, nem o riso da Rosa quando lhe pediu namoro, que o despediu com: «Ó minhocas!.. Cresce e aparece».

«Mas hoje não! Hoje é dia de festa», pensava o José Inácio, olhando para a fita vermelha, pregada na lapela do casaco, símbolo de quem ficava apurado quando se ia às sortes.

A festa prolongou-se pela noite dentro. Com bailarico, ao som da concertina do ti Alfredo, que a troco de uns copos, ferrunfava até de madrugada.

Nessa noite, a Rosa sorriu para o José. Ao vê-lo de fato novo, com aquela fita vermelha, ele era igual aos outros e até parecia menos ferricoque (pequeno, baixo). Quando por ele foi convidada para dançar, o seu coração disse sim, antes que sua boca se abrisse.

Assentou praça no Regimento de Infantaria nº1, em Viseu, onde fez a recruta. Os ditos à sua condição física continuaram. Na entrega do fardamento, o cabo (xico), ao olhá-lo de alto a baixo para lhe tirar as medidas, não se coibiu de o magoar, com a expressão: - Então! Agora já mandam putos p’rá tropa?

Aos poucos, ganha a estima do primeiro-cabo miliciano, (futuro Furriel) Damião que só o tratava pelo 22, (terminação do seu número mecanográfico) para outros era, o Meia-dose, Meia-leca, Deixa de estar sentado. Mas Minhocas graças a Deus que não. No dia do juramento de bandeira, o José Inácio desfilou ao som da banda militar, marchando com orgulho, perante a tribuna oficial, ladeada por convidados e familiares dos que prestavam juramento de bandeira. Uma a uma, as companhias desfilaram perante a tribuna.

- Atenção!.. Companhia!.. Em frente!.. Marche.- Era a vez da sua companhia. José Inácio sentiu que todo ele vibrava ao som dos acordes. Que orgulho! Santo Deus! Era militar! Peito inchado, as botas batendo com quanta força tinha, a compasso no asfalto. Lá vinha ele na frente do seu pelotão. - Lá vem ele!.. Hei! Hei!..Ó Minhocas, estamos aqui! - Pelo canto do olho, José Inácio viu o pessoal da sua aldeia e a sua mãe naquele magote de gente. A sua alegria esvaneceu-se perante aquela malfadada alcunha. A partir daquele momento, já toda a Unidade, só o conhecia por Minhocas.

Durante a recruta evidenciou uma aptidão na carreira de tiro fora de normal. De cada vez que atirava era sempre na mouche, para orgulho do seu comandante de pelotão, que o apontava como exemplo. Quando acabou a especialidade, era orgulhosamente, um Atirador Especial, para espanto de muitos, que o olhavam num misto de inveja e desdém.

Mobilizado para o Ultramar, é em Lisboa, enquanto aguarda pelo embarque, que conhece os camaradas que com ele iriam durante dois anos, fazer parte da sua vida na Guiné.

- Ó Minhocas, tens uma sorte do caraças! Segundo a lei das probabilidades, tens menos hipótese de ser atingido com esse corpo tão pequeno. – Comentava o Russo de Alcântara. – Já aqui, o nosso camarada Matacão, está feito ao bife com este tamanho todo. Isto sim! Isto é que é um soldado com peito para se lhe fazer pontaria. O riso na caserna entoou, cortando o ambiente pesado, em que cada qual perguntava a si mesmo se voltaria a Portugal. José Inácio esboçou um sorriso forçado e aceitou o abraço do Matacão, mesmo sabendo de antemão que o propósito era ridiculizá-lo ao comparar as alturas.

Na época que a companhia do José Inácio chega à Guiné, as tropas Portuguesas tinham perdido a supremacia em relação ao PAIGC, que era a Força Aérea. No início de 1973 a URSS, forneceu o PAIGC, com armamento muito mais sofisticado e numeroso, do que o exército Português possuía. Entre o diverso material bélico, o inimigo tinha agora mísseis terra-ar (SA-7) em substituição da obsoleta artilharia, com que tentava abater a aviação Portuguesa. A eficácia da nova arma foi de tal forma que Nino Vieira (comandante do PAIGC) exclamou: – Já ga-nhámos a guerra.

Sem a Força Aérea, para abastecer de munições e géneros, fazer bombardeamentos, evacuação de feridos e o transporte de auxílio em caso de socorro eminente, as tropas Portuguesas ficaram entregues a si próprias. O PAIGC, mais bem armado, tomou a iniciativa e começou a bombardear os quartéis mais avançados.

O Quartel de Guilege situava-se no interior de uma mata densa, junto à fronteira a sul da Guiné. Como via de comunicação, tinha apenas uma picada estreita e provisória. Um baluarte de entrave aos avanços do inimigo. Com uma companhia de cavalaria, uma de milícias e um pelotão de artilharia, num total de duzentos homens e uma população nativa de cerca de trezentas pessoas, servido por uma fonte de água potável a 4 km do aquartelamento.

Estava prestes a fazer quinze meses que o José Inácio se encontrava nesse aquartelamento. Durante esse tempo granjeou a estima e o respeito dos seus superiores e camaradas. Logo no princípio da comissão, ainda sem contacto com o inimigo, o seu pelotão sofreu uma emboscada. A viatura que vinha atrás, espoletou uma mina, atirando alguns soldados borda fora, enquanto outros, entalados entre os destroços, estavam impossibilitados de responder à forte metralha do inimigo. Em pânico, o motorista da outra viatura, acelerou, tentando fugir àquele inferno. José Inácio, com uma presença de espírito ou de loucura, saltou e correu para junto do Unimogue sinistrado e com rajadas consecutivas, tentava cobrir os colegas. Um deles era o Transmontano, a quem chamavam de Matacão (graças aos seus dois metros e cinco e cento vinte quilos). Aquele homenzarrão tentava desesperadamente desentalar as pernas, estando à mercê duma bala certeira. Pouco depois o Furriel conseguiu que o condutor parasse e com o resto do pelotão, acorreu e com fogo de morteiro e rajadas de G3 conseguiu pôr o inimigo em debandada.

Era o primeiro contacto com os turras: dois mortos e vários feridos. Naquela noite não houve risos às anedotas do Russo, que tentava a todo custo animar os camaradas. Uma grande tristeza ensombrava aqueles jovens. Pela primeira vez tinham visto a dureza da guerra e a morte à frente.

No outro dia, o comandante do aquartelamento, o Major Lima, ao saber os pormenores da emboscada, quis conhecer o 22 e cumprimentá-lo.

Perfilados na parada estavam os pelotões encabeçados pelos seus comandantes. O comandante dirigiu-se ao pelotão que tinha sofrido a emboscada e elogiou-os pela reacção à emboscada, embora com dois mortos, o que lamentava, mas que poderiam ter sido muitos mais, não fora a célere acção de um soldado que saltando da viatura em movimento, correu para junto da viatura tombada, respondendo ao fogo do inimigo, encorajando com o seu acto, os seus camaradas ainda aturdidos. Depois do elogio público com o objectivo de elevar a moral, os pelotões destroçaram. O comandante Lima perguntou quem era o 22, antes que o Furriel o dissesse, alguém do meio do pelotão gritou: – É o Minhocas, meu comandante! – Sorrindo perante a alcunha, o comandante mandou dar um passo em frente. Surpreso pela fraca figura do Minhocas, o comandante perguntou: - Diz-me cá o porquê dessa alcunha?

- É por eu ser pequeno, meu comandante.

- Mas ontem foste um gigante! Tomara que todos os meus comandados, fossem minhocas.

Nos meses que se seguiram, naquela picada que ligava o aquartelamento de Guilege ao de Gadamael muitas foram as emboscadas e muitos foram os mortos de ambos os lados, sendo designada pelos Portugueses como o corredor da morte.

O pelotão do José Inácio tinha a sua quota-parte de baixas no seu vaivém de patrulhamento. Tinham envelhecido aqueles jovens. De maçaricos passaram em pouco mais de ano e meio, a guerrilheiros temidos pelo inimigo. Os rostos endurecidos, o olhar sempre vivo, ouvidos atentos ao menor ruído, patrulhavam sem conversas por entre trilhos paralelos à picada. Ao menor sinal de alarme, saltavam que nem molas em posição de defesa, até que o Minhocas fizesse sinal para continuarem. O Furriel tinha tanta confiança no 22 que de olhos nas suas costas já lhe conhecia o jeito, assim que ele levantava ligeiramente os ombros, logo o Furriel com a mão fazia sinal para o pelotão ficar alerta. A experiência daqueles meses assim o ensinara. De facto o 22 era um caso raro de rapidez de raciocínio e frieza debaixo de fogo, com instinto apuradíssimo, era ele que seguia sempre à frente.

- Ele até os cheira meu Furriel. - Comentava o Russo referindo-se ao Minhocas.

- Isso é verdade. - Anuiu o Furriel. – Ele e o matacão, são uma dupla de respeito.

- Continua

Lorde
Enviado por Lorde em 28/09/2013
Reeditado em 28/09/2013
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