Alvos Vivos
Uns dedinhos tão miúdos, finos, frios, duros e atracados aos dedos tortos e compridos que compõem minhas patas. E um vento polar sorrateiro ronronando nos meus calcanhares, parecendo enregelar o resto do meu corpanzil desengonçado. Pareço estar bêbado mesmo sem ter bebido; bêbado de suco de maracujá, bêbado de aparvalhamento. Os cabelos da dona das mãos descem enrolados cabeça abaixo, enrolam-se nos meus braços, no meu tronco, me envolvem todo, sou todo cabelo, sou todo catatonia na noite primaveril do sul. E uns olhos felinos que crispam aparafusados aos meus, brilhando com fogo brando, com calmaria selvagem, com uma gama inexprimível de antíteses. Quero arrancá-los com uma colher, comê-los, pegar para mim o sentido que abstratamente brilha em seus interiores. Quero uma consciência canibal para chamar de minha. Ela estala os dedos e eu saio do transe. Sorriso mole, eu dou. O dela ali, firme. Os olhos crispando curiosidade. Não consigo balbuciar nada. Catatônico. Devo estar tendo um derrame. Minha boca foi costurada ao Espaço: impossível o som ser propagado. Queria abri-la e começar com a metralhadora de impropérios: maldizer a vida e meus amigos, pilheriar deus e o mundo, escarrar estórias órfãs de conclusão. Sangrar meu coração envenenado. É, envenenado. Esses dedos finos tentando ser antídoto. Deus me livre. Imobilizado pelos cabelos, caindo em monotonia, sentindo a chance de alguma coisa boa escorrendo pelos dedos, querendo um café que me desperte dessa letargia apaixonada, que me propicie audácia suficiente para varar a mesa e colar meus lábios nesses lábios, sentir um pouco de felicidade, para variar, mesmo que forçando o carisma, sabe?
- Olá. Cheguei! Desculpa o atraso? Alô!?
Arthur Verocai - Na Boca do Sol