Deus estava lá.
...e entreveio aquelas últimas pétalas pairando sobre o chão, cortando as nervuras do tempo, num dia daqueles em que mesmo os anjos profanariam os céus. As cinzas desciam a meia madrugada. Eu enxugava as lágrimas para poder avistar a cerração sobre o pomar, enquanto a grama molhada de tanto orvalho me conduzia junto aos pensamentos. Se as flores já morriam tão fugidias de coloração, morreria eu em quanto tempo? Morreriam as esperanças, porque aquele homem no caixão lacrado não é mais o homem que, um dia, eu amei. O batente da porta da casa velha que me segurasse diante do iminente desmoronamento do que fui eu. Enquanto aquelas pessoas amarelas e prosaicas discutiam sobre uma possível cremação. Que haveria eu de fazer? Permitir? Intervir? Cremado ou não, deixaria eu de amá-lo, por mais que ele já não estivesse ao meu lado? Como eu poderia acreditar, num momento, que Deus mesmo sendo ausente, desviou seu olhar de mim nos momentos em que eu mais devorava a solidão. Aliás, como Deus nem sequer avisou-me que podemos perder um amor mais de duas vezes numa mesma vida? Ele se calou por tanto tempo que a única voz que eu poderia ouvir, naquela manhã pavorosa, era a do meu demônio interior urrando pela sala fria: “Calem-se. Vocês não o conheciam como eu o conhecia, bando de hipócritas!” Mas deixei que o silêncio fosse maior e melhor que meus atropelos e sentei nos degraus em frente a porta principal, tentando não mais chorar daquela maneira, engolindo meus desabores, meu próprio passado e meus erros humilhantes. Enquanto seu corpo gelava mais, o meu, quase rubro, tremia de frio, de raiva, de saudades, de paixão, de medo, de arrependimento. A minha vontade era entrar, gritar a vida que se desfazia dentro de mim, arrancá-lo daquela caixa negra, daquele ventre podre para o qual voltara, aquela glória miseravelmente fingida imposta aos que morrem jovens. A mãe chorando sobre ele, o pai sentado ao longe para não ver mais a desgraça, a namorada num canto da sala, soluçando enquanto metia as mãos no bolso cortando um pedaço de chocolate. Tudo me apavorava. A quem ele mais devia e com quem mais teria tido vida, não estava próxima. Por isso eu até era grata a Deus, ela não merecia vê-lo sucumbir sem tê-la conhecido nos detalhes. Ela que era toda ele em essência, olhos e elegância. Ela mesma que deixara-se debruçar, na vida, insistentemente igual e tão melhor que o pai. Pelas terras médias por onde andasse, ela só veria a beleza dos montes e os últimos abutres brancos que pairavam sobre os oceanos cristalizados. Sua volta ao mundo não seria plena, eu sei, se descobrisse que não tive coragem de pegar o telefone para falar-lhe do pai. Talvez nem mesmo me perdoasse algum dia. Mas eu preferi dar-me ao silencio pleno. Não queria que a beleza dela se misturasse, em nenhum momento, àquela cena que eu registrava ao velar aquele corpo desconhecido, distante, profanado pela duração de um tempo que de tão ingrato se petrificou. Nada poderia rompê-lo mais. O tempo que antes era uma mera regra cotidiana dos mortais, chronos voraz, eu sei, daquele instante em diante iria se transformar nos meus décimos segundos de sono, fundindo-se às trevas, despertando todos os pesadelos que eu tentara esquecer. Por isso eu a permitiria longe do pai, mesmo que na derradeira vez, como assim fui a culpada de afastá-la dele enquanto havia chances, enquanto chronos ainda não devorara todo meu mundo.
Eu tentava vestir as luvas, enquanto a cerração aproximava-se da casa. Meu tremor, aos poucos, fazia com que elas escorregassem pelas minhas mãos. Mesmo padecendo, eu me curvava a encontrá-las caídas no beiral do último degrau. Nem eram as luvas. Creio que eu mesma não queria estar ali, com um vazio, um frio, um grito interior que eram maiores que toda a tristeza estabelecida diante do meu olhar. Eu não me importava que eles não me direcionassem uma palavra. Estava tão ocupada e ansiosa em meus pensamentos, tão soterrada em meus desalentos que só acordei de mim mesma com o barulho do estrondo. Todos correram para o centro do salão, enquanto eu imaginava o quanto uma criança levada poderia provocar risadas num momento tão inoportuno. Pensei mesmo na queda de uma cadeira ou da própria mesa de comes e bebes. Por isso me ergui e caminhei em direção à baderna, livre de mais preocupações. Mas quando freei a pequena multidão aglomerada ao centro da sala e abri espaço com as mãos, me deparei com a pior cena que alguém poderia ver diante dos olhos. Por instantes, eu que me assustara por quase nada nos últimos anos, tomei a breve e apavorante sensação de náusea e horror. O caixão intacto, mas as colunas de sustentação espatifadas em mil pedaços, enquanto, insistentemente, quase todos os homens ali presentes se detinham, incapazes fisicamente de levantarem o objeto fúnebre do chão. Nem mesmo dez ao seu redor poderiam ter a força precisa diante daquele evento grotesco. Eu me aproximava para ter certeza do ocorrido enquanto todas as outras mulheres se afastavam boquiabertas. Os últimos rapazes que tentaram segurar nas alças cromadas, destruíram-nas. Minhas lágrimas nem desciam mais. Em vez delas, um fôlego acelerado de espanto. Desmedidamente eu agradecia a Deus por minha filha não estar presenciando aquilo. A mãe saíra correndo num surto que só ela, muito bem, conseguia manter; a namorada aprendera a acompanhar tais surtos, com a convivência. Nem os irmãos chegaram perto mais depois da última tentativa. Foi quando me dei conta de que restava-me em meio aos homens, como sempre fora. Eles assombrados, sem saber o que mais poderia ser feito e eu tão aparentemente deslocada e inteiramente destruída, tanto mais que as flores já sem vida nos jarros e os pedacinhos das colunas estilhaçadas na cerâmica gélida. Pois nela desabei, ainda discreta e silenciosamente, pensando o quanto deus poderia, naquele instante, ainda me ouvir se eu implorasse com todas as preces do mundo. Todos se afastaram enquanto eu orava baixinho. O rosto que eu imaginava através daquela parede de vidro e madeira pouco espessa seria o mesmo de sempre, talvez o mesmo de quando o vi pela primeira vez. Um garoto moreno de cabelos lisos e olhos extravagantemente indígenas. Somente eu diria “indígenas” enquanto tantas pessoas diriam “indianos”. Até naquele momento ele poderia tirar de mim um sorriso. “Ele era tão lindo quando eu o deixei partir!” Era meu único e irremediável pensamento. E naqueles últimos anos, embora distantes um do outro, eu podia ver nele aquele menino, não tão robusto, mas de sorriso e olhos encantadores. Sem conseguir derramar uma lágrima mais, pedi que abrissem o caixão.
- Você só pode estar louca! – Disse o irmão mais velho aos berros.
- Deixa que ela faça o que precisa ser feito. – Parecia profetizar o pai, com um olhar distante e incansável de luta.
Enquanto todos se olharam sem saber quais respostas mais poderiam dar, o pai continuou:
- Faça, mas eu não quero ver isto! – Estendeu-me as mãos num gesto fraternal, talvez de arrependimento também. Enquanto eu o abracei, ele sussurrou:
- É seu perdão e seu pedido de perdão que meu filho precisa para ir embora e se livrar disso tudo.
Eu entendi naquele instante, enquanto ele me soltava e saía pela porta enxugando as últimas lágrimas, que ,muitas vezes, quando pensamos que Deus não está presente é onde e quando Ele mais está. Nem sempre somos nós apenas que pedimos e esperamos Dele. Muitas vezes, Deus tem esperado, por longo tempo, apenas uma decisão ou poucas palavras para mudar tudo em nossas vidas.
Eu me debrucei, então, sobre o caixão e tentei, mais uma vez enxergar aquele menino:
- Meu Amor, quis deus que fossemos em vida algo que nem Ele mesmo, talvez, pôde explicar. Quer Ele que, neste momento, também estejamos diante um do outro para juntos nos perdoarmos de tanto ter errado aos olhos Dele. O Deus que você mesmo ensinou-me a amar e respeitar, Aquele que pensei ter me abandonado nos últimos anos enquanto via você, cada vez mais, distante de mim. Ele tem nos unido agora para que possamos perdoar um ao outro. E eu te perdoo com a mesma verdade, com o mesmo amor com que peço perdão. Perdoa-me, amor, por tê-lo abandonado enquanto árduo era seu caminho. Perdoa-me das traições quando eu mesma, sem imaginar, estava traindo não mais que a mim mesma. Perdoa-me das palavras e gestos que tanto feriram tua alma e teu corpo. Perdoa-me das noites mal dadas, das lágrimas, tantas vezes, por nada, dos meus ímpetos, das minhas falhas. Perdoa-me do vazio deixado, das madrugadas em que não estive ao seu lado, dos gritos, dos medos tolos, dos meus poucos cuidados. Perdoa-me por tudo, por ter desistido do amor, quando Deus tanto nos ensinou o contrário. Perdoa-me pela vida que não pudemos ter, pelas alegrias que deixamos, pela tristeza e frustração que permitimos os olhos tão lindos de nossa filha, pelo coraçãozinho dela que tanto foi machucado. Perdoa-me, amor, por termos sido tão horrivelmente ingratos a Deus, mesmo Ele nos dando tanto.
Eu pude vê-lo, ainda, sorrindo, saindo calado pela porta da frente, sumindo na neblina que já adentrava a casa. Ele não estava naquele caixão, não era ele mais naquele corpo que há anos se ausentara. Talvez, não fosse ele há muito tempo. Eu não sei nem saberei exatamente o quanto ele pôde me dar seu perdão, mas sei que o meu, eu entreguei a ele, inteiramente. O quanto deveria ter entregue antes! Assim, nossas vidas poderiam ter durado. Poderiam os dias terem amanhecido mais quentes, poderiam as noites ter sido menos solitárias e mais claras. Quantas estrelas mais surgiriam? Quantos sorrisos perceberíamos? Quantas canções teríamos feito? Quantas viagens, quanto sonhos, quantas gargalhadas? Deixamos para trás tão grandes tesouros de Deus e, talvez, nunca nos demos conta. Só mesmo na ultima hora, num instante em que os corpos não mais segregam as mesmas esperanças e emoções é que abrimos os olhos da alma e conhecemos a face do Criador. Temos a nítida certeza de que Ele nunca se ausentou, nós que tantas vezes deixamo-Lhe pelos caminhos, pelos cantos da vida. Só conseguimos ser gratos diante da morte, quando conhecemos nossa condição mais pavorosa.
Meus pensamentos tanto pairaram no passado, enquanto nas cenas que se repetiam em minha cabeça, nos lugares e nos momentos em que nunca pude escutar a Deus, agora poderia vê-lo nitidamente à nossa espera, à espera de uma palavra, de uma atitude... Mas o passado não poderia voltar para que pudéssemos consertá-lo. O passado foi lacrado com aquele caixão quando esvaziou-se de tantos pesos, de tantas dores, de tantas renúncias. Puderam segurá-lo, então, e levanta-lo apenas quatro homens. Enquanto eles tiraram-no pelos fundos, por haver maior espaço, eu deixei que fosse, pois nele não havia mais nada sequer que pó. As coisas que foram e manteriam-se verdadeiras e divinas, até que este mundo não fosse mais mundo, sumira com a neblina. Atingira o último degrau dos céus. Não esqueceria até o ultimo segundo da minha breve existência os olhos “indígenas”, nítidos e numinosos, despedindo-se em meio àquela manhã embaçada. Os olhos que eu tanto amei. Os olhos que amarei até o meu fim ou, quem sabe, mesmo além.
... e pude sentir, Deus estava lá.