REVOLUÇÃO

A turba ensandecida reunida na Cinelândia urrou de contentamento quando a direção geral do movimento, que ninguém sabia nem que existia, anunciou que Jesus em pessoa e espírito resolvera descer de seu trono celestial e apoiar pessoalmente a grande revolução. Então Ele, o Senhor todo poderoso, iria tomar a frente na causa? Era a glória, com o perdão do trocadilho. Agora não haveria cassetete nem spray de pimenta que impedisse o povo de conquistar retumbante vitória naquela luta.

Fez-se enorme algazarra quando, escoltado por quatro anjos celestiais, o Senhor pairou sobre as escadarias da câmara municipal, local privilegiado e que permitia uma visão panorâmica da multidão que lotava a Avenida Rio Branco carregando faixas e cartazes com palavras de ordem. "O povo acordou", dizia uma. "Abaixo os políticos corruptos", era o que dizia outra. "Por mais verbas para a educação e para a saúde", "Chega de roubalheira", "Não queremos copa, queremos transparência" eram frases pintadas à mão pelos manifestantes, a grande maioria jovens entusiasmados pela importância do evento.

Ofereceram um megafone a Ele, que recusou educadamente. Não havia necessidade, era a voz de mil trovões que falaria. E quando Sua santa boca se abriu para falar, milagrosamente silenciaram-se as vozes das mais de duzentas mil pessoas presentes. Mesmo os baderneiros que se aproveitavam da confusão para depredar uma agência bancária nas redondezas pararam para ouvir o que Jesus tinha a dizer.

- Brasileiros e brasileiras - começou ele, e percebeu logo que havia iniciado mal o discurso, pelas reações nos rostos dos manifestantes, principalmente os mais velhos. - Decididamente eu apoio a vossa causa!

Foi um rebuliço único, desde a esquina com a Sete de Setembro até o Passeio Público. Jesus era O Cara e estava com eles!

Foi necessário que um dos anjos tocasse sua corneta ensurdecedora para que a multidão voltasse a fazer silêncio.

- Sim, eu estou convosco. Meu pai é brasileiro e eu também adoro este povo. Creio que têm razão em vir para as ruas pedir que vosso país, finalmente, seja tratado com decência pela autoridades.

Mais uma vez a multidão exultou e começou um coro crescente de "Lindo e gostosão, Jesus na revolução!".

Mais uma vez foi necessário a intervenção do anjo corneteiro para que a multidão silenciasse.

- Obrigado, obrigado! - Jesus levantou os braços em agradecimento e os mais próximos puderam verificar com seus próprios olhos, tal qual Tomé, as marcas de cravos nas palmas de suas mãos.

- Vamos sacudir este país! Vamos colocar para fora os corruptos, aqueles safados que saqueiam os cofres públicos. Vamos prender todos os que mamam nas tetas da nação, todos os que desviam verbas dos hospitais para o próprio bolso, vamos destruir aqueles que pegam o dinheiro das merendas das escolas públicas e aplicam na construção de suas mansões em local de preservação ambiental!...

O público não sabia se gritava, se aplaudia, se aceitava Jesus como seu único e suficiente salvador, enfim, todos exultavam com o discurso do Senhor. Nem mesmo Leonel Brizola, vivo estivesse, conseguiria monopolizar a atenção geral com tanta veemência como aquele Santo Filho de Deus estava conseguindo.

Pela terceira vez o anjo da trombeta teve de agir para controlar a multidão.

- E digo mais - continuou Jesus, algo entusiasmado com a reação favorável da plateia. - Eu prometo que não ficará nenhuma liderança corrupta, nenhum político indigno do cargo que ocupa. Extirparei a todos sem dó nem piedade e o povo, finalmente, tomará as rédeas dessa imensa nação!...

Foi apoteótico. A ola ia e vinha em direção às escadarias de onde o Senhor discursava, palmas, vivas, hurras, coros de "Jesus é o maior", "Deus é brasileiro, Jesus é carioca", "Jesus para presidente" se fizeram ouvir por toda a extensão da Cinelândia. O povo delirava.

- Antes, porém, de iniciarmos a limpeza geral na nação brasileira - o anjo precisou tocar sua corneta mais uma vez - para não ir contra os meus princípios, digamos, cristãos, precisamos acertar uma coisa.

O silêncio foi sepulcral. Não se ouvia nem um pio.

- Vocês, para me seguirem, precisam estar tão limpos quanto as minhas vestes.

A multidão pareceu não entender direito.

- "Mas do que o Senhor está falando, Jesus?" - ouviu-se alguém perguntar.

Jesus olhou para a pessoa, perdida na multidão - pois nada escapa ao olhar do Todo poderoso filho de Deus. O Seu olhar era manso.

- Eu estou dizendo, filho, que para combater os corruptos há que se ter um coração limpo, sem corrupção. Que para se acusar alguém é necessário estar-se limpo do mesmo pecado. Que para mudar uma nação, é indispensável ter mudado antes a si mesmo.

O povo reunido continuou a não entender o que Jesus estava dizendo. "Será que ele pirou na batatinha?" - perguntavam uns - " Esse Jesus deve ser genérico." - afirmavam outros.

- Para facilitar - disse Jesus - vou dizer quem não pode participar dessa batalha por não ter a autoridade necessária para combater o mal: quem, dentre os presentes, já subornou um policial para não ser multado?

Alguns, dentre a multidão, entre temerosos e com medo de mentir para o Filho de Deus, levantaram as mãos. Jesus os olhou com benevolência e disse:

- Vocês não podem lutar contra os corruptos, pois foram corruptores.

Uma a uma, aquelas pessoas foram se retirando cabisbaixas.

- Quem aqui já furou alguma fila para ser atendido antes que os outros?

Mais algumas dezenas de pessoas levantaram as mãos.

- Vocês não podem combater os que prejudicam o povo, porque vocês já prejudicaram seu próximo. - e fez sinal para que se retirassem.

- Qual de vocês já se aproveitou de algum conhecido de alta hierarquia para conseguir benefícios próprios?

Dessa vez as mãos levantadas chegaram a três centenas.

- Quem já dirigiu após consumir bebida?

- Quem já jogou lixo na rua?

- Quem já trocou voto por algum benefício?

- Pô, Jesus! Parece até que quer lutar sozinho!... - Resmungou alguém antes de se retirar.

-Quem aqui já mentiu e enganou o próximo ou fez promessas que sabia que não poderia cumprir?

A multidão começou a debandar, entre desanimada e surpresa.

Ao final de uma hora de perguntas, eis que resta apenas Jesus, os quatro anjos e um único homem.

O Senhor olhou para o anjo à sua direita, sorriu e disse:

- Um único homem, Gabriel. Um único homem nos restou, de um total de mais de duzentos mil. - Ele sorriu. - É o suficiente. Com este único homem puro e de bom coração, nós faremos a revolução que mudará este país.

E, dirigindo-se ao homem que estava de pé em meio à Av. Rio Branco vazia e desconsolada, Jesus disse:

- Aproxima-te, filho. Só me restou você, e é com você que faremos essa guerra.

Como o homem não se mexesse do lugar, Jesus fez um sinal a um dos anjos para ver o que estava acontecendo com ele. O anjo voou até o meio da avenida, observou o homem atentamente e retornou ao palanque onde o Senhor se encontrava.

- Sinto muito, meu Senhor - disse, desconsolado - Mas ele é surdo.