Loucura utópica
Era noite de sexta feira e a música do bar da esquina ecoava pela praça sob as estrelas. Por mais que o som se propagasse por todos os cantos, não calava o som de Bob Marley que era cantado pelos de dreads que acompanhavam a batida com palmas atrás de uma arvore. Era como se os ritmos se respeitassem entre si. Era uma exceção à todas as regras que regiam a natureza, só ali naquele momento, uma trégua entre todas as rivalidades. O sertanejo do bar, o funk dos celulares na esquina, o reggae dos que batiam palmas aos sorrisos, e o rock dos punks daquela roda mais ao centro. E que imagem peculiar era aquela roda! Pobre dos burgueses que de dia gabava-se do poder de domínio que tinham em suas mãos. A Câmara dos Vereadores situava-se logo à esquina, e agora era o ponto mais escuro e sem vida. Logo ela, tão imponente de dia... Se fechavam amedrontados em suas casas, tão impotentes à noite...Uma pena! Ah, se eles soubessem que a verdadeira beleza daquela cidade não estava nas grandes obras e nas promessas que nunca haviam se ser cumpridas. A verdadeira beleza encontrava-se naquela singela praça de todos os ritmos que diziam pejorativamente ser lugar de "qualquer um". Só quem passou por ali pode constatar que na verdade era o lugar de todos.
Alguns estavam sentados em bancos, outros no chão, todos formando uma roda. O das calças rasgadas e piercing na boca vestia preto e estava de pé apoiando o vilão velho sobre os joelhos. A afinação não importava, o que valia ali era o talento. Talento não de dedilhar os dedos mais rápido possível, ou tocar mais forte. O talento de unir toda aquela gente ali. Desde a filhinha da mamãe, o tímido de barbas, a que tinha como seu maior orgulho as notas que tirara da escola, o gay, o de vinte, o de treze anos, até a que não sabia bem ao certo quem era com um cigarro nas mãos. O talento de unir todos os esteriótipos possíveis em uma só voz, que cantavam "Não tinha medo o tão João de Santo Cristo era o que todos diziam quando ele se perdeu..."
***
Talvez tinha sido o caráter utópico da cena que chamara a atenção daquele senhor que havia tomado aquela praça a muito tempo como seu lar. Se por opção ou não, ninguém nunca saberá. São histórias que a gente sem querer se recusa a ouvir antes que seja tarde de mais, e o tempo faz questão de apagar. De qualquer maneira, o importante é ressaltar que aquele senhor que se aproximava emprestava sua casa todas as noites para que aqueles jovens pudessem sonhar um pouco. Talvez aquele barulho todo o incomodasse, atrapalhasse seu sono.. Ou talvez o que roubasse seu sono fosse o silêncio. Talvez aqueles jovens que sem saber emprestavam sua casa também os emprestassem seus sonhos.
"O que é que você disse ai?" O senhor interrompeu a conversa, apontando ao punk dos cabelos descoloridos. "Essa palavra ai que você disse, o que significa?" Era impossível responder a pergunta afinal o punk não havia dito nada referente ao que o senhor indagava. Após chegar a essa conclusão, foi a vez do punk perguntar. "O senhor vai me desculpar, mas como é que você chega nessa loucura?" Era outra pergunta sem resposta.
Aquela que não sabia muito bem quem era levantou-se, e como se por um segundo tivesse descoberto, dirigiu-se ao punk que estava em pé ao seu lado: "E você, como chegou a essa loucura?" O punk não entendeu muito bem a pergunta, ou se havia sido uma provocação. "E aquele casal ali no banco ao lado, como chegaram a essa loucura?" Ela continuou apontando cada um que havia ali, repetindo a pergunta. "Aqui é todo mundo tão louco quanto. Aqui, ali, em qualquer... Esse homem chegou aqui e te perguntou o que significava a palavra que você havia dito e a gente insistiu em lhe perguntar sobre qual palavra especificamente ele se referia. Talvez fossem todas. O que significa cada palavra que sai da tua boca? A nossa sorte é que a nossa loucura é parecida. Do punk rock ao neo-nazi, do ateu ao evangélico... A nossa sorte, ou a nossa maior desgraça, é que a nossa loucura fala a mesma língua e usa a mesma lógica da do inimigo, por mais contrárias que sejam as ideias. Você chegou pra ele e perguntou como chegar a essa loucura, enquanto ele te perguntou o que significava uma palavra. Mal sabiam vocês que estavam repetindo um ao outro. O que significavam essas palavras insanas que saem da tua boca? O que significam todas elas? Como é que você chegou nessa sua loucura de palavras? Como é que você chegou nessa loucura?"
O violão voltou a tocar, enquanto o senhor estendia a mão aos dois rapazes mais próximos. O ais alto tinha um cabelo grande, loiro, e encaracolado. Sem exitar apertou a mão que estendia-se a sua frente. Já o mais baixo, também de cabelos grandes e encaracolados, porém escuros, ficou olhando por algum tempo antes de tocar às mãos como quem analisava a situação. Desta vez não foi com grande excitação que aquele ultimo aperto de mãos aconteceu. Preconceito não era exatamente a palavra. Talvez medo fosse mais adequado à situação. De ambas as partes, medo, receio. Mas afinal, era natural o estranhamento entre loucuras de mundos tão diferentes, não era? Ao amassar a bituca de cigarro com os pés, a garota não conteve um sorriso diante aquela cena. Quando olhou pra cima novamente, o homem já havia sumido.
"Vocês querem ver uma mágica?" Perguntou soltando o violão e tirando dos boldos das calças rasgadas um velho baralho. Após o numero, todos sorriram. O punk ofereceu outro cigarro a tal menina do discurso. Ela aceitou e ambos levantaram-se para ir embora. Cada um foi pra um lado.