OS SONHOS DE MARIANA
“Três montados num, verruga no ânus dum!”
Todas as manhãs, enquanto iam os três montados e ensanduichados sobre um cavalo, ouviam essa praga, além de outros impropérios. Faziam pouco caso da maldição rogada, mas Mariana, após ouvi-la, sempre elevava aos céus uma prece que a defendesse de uma pelotinha naquele lugar tão impróprio e inóspito. Iam, os três, bem intencionados, atrás de aprender os mistérios das notas musicais e, crianças que eram, não atinavam que podiam estar judiando do animal que os levava.
Luisinho ia na frente, cuidando da rédea e era hábil na condução da cavalgadura. Mariana, no meio, porque não tinha a destreza de Josefa, irmã postiça de Luisinho e já tão acostumada a correr pastos em montarias. Voavam como pé de vento entre árvores, seus cabelos acusavam a liberdade sem cabresto, própria das crianças.
Os pais dos três sonhavam com filhos músicos, que soubessem tocar acordeão lendo partitura. Decidiram, então, enviar os três para aprenderem a arte dos solfejos com um professor de música, que viera para um sítio próximo, por indicação de um psiquiatra, para descansar da loucura da cidade grande. Necessitava do silêncio rural para espantar algumas paranoias.
Mariana sonhava com uma bicicleta, quando o pai chamou-a e disse:
__ Minha filha, no lugar da bicicleta, vou lhe dar uma sanfona! Já imaginou?!
__ Mas, pai, eu quero mesmo é uma bicicleta vermelha!
O pai insistiu:
__ Quando já estiver tocando bem, irá se apresentar na TV! Farei sua inscrição no programa Festival Infantil, da Tia Lucy! Serei o pai mais feliz destas paragens, vendo minha filha na televisão!
Tão empolgado estava, que desandou a falar e a sonhar alto, e nem ouviu os argumentos que a filha embutiu no peito. Mariana ganhou um presente vermelho, bem encarnado, mas não era a bicicleta dos seus sonhos. Era uma sanfona Todeschini com doze registros, quatro abafadores e cento e vinte baixos. Tão grande, que ela se escondia atrás do fole.
Os pais de Luisinho e Josefa nem lhes perguntaram se queriam, apenas informaram que iriam a cavalo, na companhia de Mariana, aprender a tocar harmônica. E que tomassem cuidado com o professor, que era meio doido.
Na meninice dos nove anos, lá iam eles com a incumbência de serem músicos, mas o que queriam mesmo era brincar à beira do riacho, molhar os pés naquela água límpida, enquanto deixavam o cavalo amarrado numa sombra, já que ele não podia cruzar o ribeirão sobre a pinguela. Brincavam, molhavam-se, saltavam entre as pedras que eram os tapetes por onde corria a água e caçavam borboletas coloridas. Quando se cansavam da algazarra, deixavam o cavalo à espera, atravessavam a pinguela, subiam em meio à roça de milho, passavam sob a cerca de arame farpado, corriam pelo pasto com medo do boi brabo e chegavam à casa amarela com varanda e uma enorme árvore ao lado.
O professor era calvo no alto da cabeça, como os freis capuchinhos e tinha a sobra dos cabelos armados, subindo nas orelhas. Nariz grande e olhos estatelados. Além de paciência mínima.
Ai daquele que errasse um compasso ou solfejasse uma nota equivocada. O murro na mesa ecoava pasto a fora e espantava as andorinhas da árvore.
Dos três, Mariana era a sonhadora e perdia minutos sem fim atirando pedrinhas na água e sonhando com o destino do rio entre as margens de frondosas árvores. Perdia-se em sonhos durante a aula, que eram despertados abruptamente pela realidade impaciente do professor. Conjecturava algo que pudesse convencer o pai a aceitar sua deserção de ser uma grande acordeonista.
Certo dia, o irado mestre deu uma pancada tão forte na mesa, que as três crianças pularam de suas cadeiras ao mesmo tempo, num balé cuja sincronia fazia inveja a qualquer atleta de nado sincronizado. Foi o bastante para tomarem a séria decisão de suas vidas.
Na volta, ao passarem pelo arroio, sentados na pinguela com suas pernas dependuradas, em comum acordo, jogaram o Bona e o Método Mascarenhas na água corrente. Mariana sonhadora, que aprendia a tocar a valsa Sobre as Ondas, viu, mais uma vez, a liberdade criando asas sobre as ondas do regato e pensou, naquele momento, que alguma sereia poderia aprender novas notas musicais para entoar seu canto. Acompanhou o solfejo das águas levando o sonho que não era seu. Inventou para o pai uma lorota de ter sido perseguida por enorme serpente e que, na fuga, perdera o material de estudos. O pai fingiu acreditar.
Nenhum dos três virou sanfoneiro e Mariana também não ganhou bicicleta vermelha. O fole da sanfona fez vida nos braços de seu irmão que nunca soube o que é uma clave de sol ou um fá.
Jamais se aventou sobre qualquer verruga em um deles, mas Mariana até hoje sonha e faz versos para sereias e peixinhos de prata que deslizavam suavemente no regato, entre pedras à sombra das árvores.
E viaja atrás de borboletas coloridas, no vermelho de sua bicicleta imaginária.